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É possível que o caos pós-pandemia de “The Division” aconteça no mundo real?

Tudo começa na Black Friday com consumidores ávidos por pechincha. Mal sabem eles que o suado dinheirinho leva consigo algo letal: um vírus contagioso capaz de, em poucas horas, contaminar milhões de americanos que se deslocam pelos grandes centros do país.

Quando os sintomas se manifestam, é tarde demais. A pandemia varre a nação. O pânico se espalha. Fronteiras são fechadas. Ruas e cidades inteiras são colocadas em quarentena. É o início o colapso do governo norte-americano. Serviços básicos – água, transporte, eletricidade, alimentação – caem por terra junto da cadeia de suprimentos.

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Poderia acontecer?

Antes que você comece a acumular feijão enlatado num bunker em seu quintal, esse cenário de colapso social não é uma previsão, é ficção: a cria da desenvolvedora Ubisoft Massive para o aguardadíssimo Tom Clancy’s The Division, a ser lançado em março para Playstation 4, Xbox 360 e PCs.

A grande questão é que, para tornar o jogo o mais realista possível, os desenvolvedores se basearam em dados científicos. Se uma pandemia atingisse mesmo Nova York, então The Division forneceria uma representação autêntica dos possíveis desdobramentos.

Ao longo das últimas décadas, avaliações científicas do risco de pandemia se tornaram assunto sério. E ficou claro em todas elas que nossa sociedade segue despreparada. E o pior é que o risco não vem do bioterrorismo – e sim da civilização industrial.

Em 2006, o Departamento de Segurança Nacional dos EUA lançou um guia de prontidão pandêmica que dizia que “o risco crescente de uma pandemia mundial de influenza oferece diversas consequências devastadoras em potencial para infraestruturas críticas nos EUA”. O texto era uma referência ao risco de proliferação do vírus Influenza (H5N1), causador da chamada gripe aviária. “Uma pandemia reduzirá drasticamente o número de trabalhadores em todos os setores”, continua o comunicado, “o que interromperia significativamente o movimento de pessoas e bens, ameaçando serviços e operações primordiais.”

Depois que a gripe aviária se espalhou da Ásia para a Europa em 2005, Mike Leavitt, secretário de estado norte-americano, da Secretaria de Saúde e Serviços Básicos, comentou que “se o vírus H5N1 não desencadear uma gripe pandêmica, outro vírus o fará”. Não havia exagero nenhum ao estimar o caos, reforçou.

“Jurisdições locais, estaduais e tribais serão sobrepujadas e incapazes de prover ou garantir serviços e bens essenciais”, diz um documento do Departamento de Defesa detalhando o possível impacto de uma pandemia de gripe, tornado público em 2009. Uma pandemia também poderia “causar ramificações econômicas e de segurança significativas; potencialmente distúrbio social em grande escala devido ao temor de infecções ou preocupações com segurança”.

Crédito: Ubisoft

Outras possíveis consequências seriam “conflito militar internacional, aumento na atividade terrorista, distúrbios internos, colapso político e/ou econômico, crises humanitárias e mudanças sociais drásticas”.

Em janeiro de 2016, a Comissão do Sistema de Riscos de Saúde Global para o Futuro, um coletivo independente de cientistas renomados, divulgou um relatório inédito que calculava que os prejuízos econômicos anuais causados por pandemias poderiam chegar a 60 bilhões de dólares.

No decorrer do próximo século, a Comissão prevê que o mundo passará por pelo menos uma pandemia – e há uma chance de 20% de passarmos por quatro ou mais no período. Nada animador, eu sei.

O simulador de colapsos

Chegamos no ponto que eu queria: o cenário em The Division, por mais que seja fictício, ainda é realista.

A Ubisoft contratou a empresa francesa BETC para desenvolver um software chamado “Collapse: The End of Society Simulator” [Colapso: Simulador de Fim da Sociedade] para ajudar a criar o pano de fundo do game.

Tive a oportunidade de testar uma versão beta do Collapse e é assustador. Tudo que você precisa fazer é digitar o endereço de onde está – ou qualquer lugar que queira testar – e deixar a simulação rolar.

O simulador trata você como “paciente zero”, a pessoa que leva consigo o vírus, para testar quanto demoraria para um vírus fictício da varíola chegar ao ponto de causar um colapso global.

O vírus usado no simulador, Variola Chimera, é uma versão fictícia e transformada já em arma biológica da varíola comum, Variola Major. A versão Chimera tem tempo de incubação mais rápido que a varíola comum (sete dias em vez de 11), uma taxa de mortalidade de 90% e, como foi modificado para ser usado como arma biológica, não há vacina disponível de imediato.

Para criar um teste plausível, o simulador toma como base informações abertas ao público de mais de 5.000 cidades, incluindo aí densidade populacional, número de leitos em hospitais, ligações entre cidades, munícipios e o resto do mundo, bem, como demais dados relevantes.

Depois de inserir minhas coordenadas, do norte de Londres, vejo horrorizado como qualquer movimento meu em área limitada leva o vírus a infectar rapidamente centenas e milhares de pessoas.

Crédito: Ubisoft

Meu primeiro passo é visitar o hospital local quando fica claro que estou mesmo doente, o que não faz nada além de infectar 400.341 pessoas no dia 4.

Recebo alta no outro dia. O governo distribui vacinas emergenciais, então rumo ao ponto de distribuição mais próximo, que, de tão lotado, me faz esperar até o dia 6 – quando as vacinas se esgotam.

Vou ao supermercado da região comprar mantimentos. As prateleiras estão praticamente vazias. As pessoas brigam pelo que restou. O governo declara estado de emergência.

No nono dia, são 2 milhões de infectados, 398.411 mortos e os policiais não conseguem conter a revolta nas ruas.

Já havia marcado uns dias antes voo para Gênova, na Itália, para fugir de tudo. Quando aterrissamos, já são mais de 13 milhões infectados no mundo e 773.411 mortos. Grandes cidades declaram lei marcial.

No 22º dia, meio bilhão de pessoas morreram, com 1,4 bilhões infectadas. A infraestrutura de energia elétrica, comunicações e cadeias de suprimentos quebram. O mesmo ocorre com o comando militar.

No 24º dia, o mundo como conhecemos já acabou.

O The End of Society Simulator ajudou a criar o cenário da Nova York de The Division: a taxa de contágio e morte do vírus bate com a doença fictícia do game.

Diretiva 51

The Division tem como uma de suas grandes inspirações um evento conhecido como Operation Dark Winter, uma simulação militar de um ataque biológico terrorista nos EUA em junho de 2001″, explicou o diretor de PI do game, Marting Hultberg.

Exercícios como Dark Winter fizeram com que o governo Bush aprovasse a Diretiva Presidencial de Segurança Nacional – também conhecida como “Diretiva 51” – com anexos tão secretos que nem congressistas do Comitê de Segurança Nacional têm acesso.

O objetivo da Diretiva 51 é manter a “Continuidade do Governo” no caso de uma “Emergência Catastrófica”. Inclui até mesmo “atos localizados da natureza e acidentes” bem como “emergências tecnológicas ou ligadas a ataques”.

Crédito: Ubisoft

A Diretiva garante ao Presidente poderes draconianos que incluem a suspensão de todas as eleições, subordinação completa de departamentos locais e federais do governo ao executivo e a extensão do poder militar na vida civil.

O conteúdo desconhecido dos anexos secretos da Diretiva 51 é campo fértil para o mundo de The Division inspirado em Tom Clancy e suas operações e agências secretas.

“Especulamos que parte destes planos de ‘continuidade do governo’ incluiriam a criação de células militares autônomas secretas, sem regras para combate, espalhadas pela sociedade, vivendo normalmente, esperando para serem ativadas após uma emergência como uma pandemia: A Divisão”, disse Hultberg.

A ideia de exércitos secretos, disse Hultberg, é inspirada na História: células secretas da OTAN existiram pela Europa, criadas pelo MI6 durante a II Guerra Mundial, para o caso de possível invasão soviética.

Por mais que fossem estabelecidas como “células dormentes”, esses exércitos secretos recrutavam seus soldados em meio a grupos de direita e nacionalistas duvidosos. Era tudo feito tão na surdina que muitas vezes nem os governantes sabiam da existência.

O resultado, documentado pelo historiador suíço Daniele Ganser, é que tais grupos, sem supervisão, cometeram atentados terroristas em que grupos de esquerda ou pró-comunistas acabaram levando a culpa – a ideia seria descreditar movimentos políticos considerados perigosos por sua simpatia com a União Soviética.

Essa parte pouco conhecida da história finca os pés de The Division no mundo real, mas também combina com a ambição da Ubisoft de dar aos jogadores liberdade verdadeira nas escolhas do mundo aberto do jogo numa Nova York em ruínas.

Sem quaisquer regras – como no caso dos exércitos secretos da OTAN – os jogadores podem fazer o que bem entender em termos de escolhas morais quando é hora de retomar as ruas de Nova York. Esse pano de fundo deixa uma folga para que a Ubisoft crie uma narrativa empolgante a partir dos segredos mais obscuros do mundo.

Então o seu console poderia salvar o mundo da próxima pandemia?

Provavelmente, não.

Mas há muito mais em The Division que mero entretenimento.

O End of Society Simulator da Ubisoft – que ajudou a criar o cenário da Nova York em colapso do game – poderia servir como base para a comunidade científica explorar possíveis situações com diferentes doenças.

Ao alterar os parâmetros dos vírus no simulador, incluindo dados mais detalhados sobre infraestrutura, o game poderia servir como uma ferramenta útil de análise de cenários, de forma a testar a resiliência de diferentes sociedades.

Crédito: Ubisoft

Como produto cultural, The Division com certeza é uma reflexão de nossos tempos – em que problemas sociais, políticos e econômicos cada vez mais chamam atenção para a série de riscos em quais nossa civilização está envolvida: sejam eles de longo prazo, como a mudança climática; ou de curto prazo, como a recessão econômica.

Mas o jogo também popularizará a ideia de que existem vulnerabilidades reais no coração da civilização industrial – em especial, o fato de que o progresso tecnológico nos custou aumentar os riscos de nossa própria sobrevivência.

Tal tema recorrente na indústria do entretenimento pode muito bem manifestar as nossas ansiedades em relação à morte. Mas, além disso, é também a reflexão de uma consciência crescente, apoiada pela comunidade científica, de que a natureza tem seus limites – e, quando os ignoramos, fazemos por nossa conta e risco.

Tradução: Thiago “Índio” Silva