Em cinco semanas do corrente ano, os números da violência doméstica em Portugal podiam figurar num qualquer documentário sobre monstros de carne e osso. Ao sabermos que já faleceram nove mulheres neste contexto, é difícil não sentir repugnância e revolta (ainda para mais tendo em conta que um recente estudo confirma que elas andam desgastadas com o emprego, com o salário e por executarem a maior parte das tarefas domésticas). Lamentavelmente, não é só entre casados que esta merda acontece. Também há muito a dizer sobre namoros tumultuosos que, em casos extremos, podem resultar em fatalidade.
O início de um relacionamento é comummente marcado por um período de “eterna felicidade”. Nessa fase “embriagada”, parece que o Mundo foi criado para alimentar “a” chama que podia acender uma centena de tochas olímpicas. Tudo é belo e o “nós” tão poderoso, que existe o sentimento de ser possível bater todos os super-heróis da Marvel e ainda haver pulmão para vencer uma equipa que tenha Messi e Ronaldo. Aos nossos olhos, as imperfeições do outro são esbeltas como os melhores projectos assinados pelo arquitecto Oscar Niemeyer e há (quase) a certeza de se ter encontrado o/a “tal”. Ui! A paixão é uma coisa linda…
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Baseada no livro de Caroline Kepnes, a série You (ver trailer acima) é um thriller psicológico com pozinhos de romance perfeito. Temos um rapaz que é manager numa livraria e que revela saber muito da poda (Joe); do outro lado, a rapariga que ambiciona ser escritora enquanto termina os estudos na área da literatura (Beck). No dia em que se conhecem, a empatia é imediata e, as usual, fica no ar um primeiro contacto merecedor de continuação.
Imediatamente a seguir a esse encontro impactante, Joe Goldberg (papel protagonizado por Penn Badgley, que esteve em destaque na série Gossip Girl) faz o que é “normal” para muitos humanos por estes dias. Pesquisa na Internet tudo o que há sobre a pessoa em causa, desde as amizades e familiares visíveis nas redes sociais, se há algum namorado na costa ou tenta localizar a sua morada física na “big apple”.
A partir daí, denotando uma personalidade maquiavélica, a sua obsessão acelera para uma escalada de actos sórdidos, que não podem ser desculpados com o seu passado traumático e perturbador, ou outras acções altruístas e românticas. Digamos que vai de um simples “stalker” a cenas que podiam constar numa revisitação do clássico American Psycho (filme inspirado na obra de Bret Easton Ellis e realizado por Mary Harron). Vale mesmo tudo para conquistar a pessoa desejada?
Guinevere Beck (Elizabeth Lail, actriz que fez de Princesa Ana em Once Upon a Time) é a estudante com amigas “cheias de papel” e – como ela – viciadas no Instagram, que anda insatisfeita com a vida pessoal (nada como umas escapadelas no Tinder) e com pouco alento no capítulo da escrita. Com a entrada de Joe no quotidiano, o nível de autocomiseração diminui, a criatividade aparece e (mesmo sem dar conta) envolve-se num obstinado triângulo amoroso. Dentro da sua simpática doçura, existe contudo um passado que esconde algo estranho…
De um modo geral, no meio de algumas situações escusadas (como o número de vezes que Joe está em frente do apartamento de Beck, a espiá-la), You é uma crítica velada aos perseguidores intrusivos nesta era da tecnologia, ao que de bom e mau se pode encontrar num relacionamento (há um personagem que reflecte o peso da violência no namoro e a consequente negligência na educação do filho), sendo mais uma obra onde os livros e os escritores são proeminentes.
Nesta esfera, ultimamente, se lembrarmos a edição dos filmes A Pereira Brava (com estreia em Março nas salas comerciais em Portugal), The Bookshop e Collette ou o lançamento da série The Truth About the Harry Quebert, é inegável o estímulo para abraçarmos a arte de folhear e ler um livro. A cultura do scroll precisa de intervalo.
“You” pode ser vista na Netflix desde o final do ano passado (depois de ter sido transmitida no canal norte-americano, Lifetime). Está prevista uma segunda temporada.
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