Recentemente, a ONU anunciou 17 metas globais para os próximos 15 anos. A meta pro Brasil é Redução das Desigualdades. Inspirados por isso, pensamos numa série de matérias pra VICE, Noisey, Thump e Motherboard. Clique no link acima pra sacar todas.
Cheiro de fome rolando no ar. Cebola e alho refogados na panela esperavam pelo feijão no instante em que Lis Blanco, 26, entrou na casa de Ana Paula, no bairro paulistano de Sapopemba. As duas conversavam sobre comida quando Ana disse a Lis:
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– Você que gosta de podre, né? De estudar comida do lixo. O que você acha deste frango? Encontrei-o descongelando no lixo, mas acho que, se eu der uma fervida, fica bom, né?
Lis, a antropóloga e pesquisadora da Unicamp, foi dar uma conferida na comida e pôde ver que o frango já tinha uma aparência bastante esverdeada, o que não impediu que Ana o colocasse na panela.
A cena aconteceu enquanto Lis pesquisava alimentos em feiras livres de São Paulo e a comida servida no programa Mesa Brasil, do Sesc. O resultado está em Vida podre: a trajetória de uma classificação, a dissertação de mestrado apresentada por ela neste ano. E foi em meio à sua investigação que a antropóloga desenvolveu a tese de que algo é considerado comestível (ou não) a partir de uma equação que leva em conta o valor da comida e o valor da própria vida da pessoa — ou o risco que haveria para Ana em comer um frango descongelado encontrado no lixo.
Vá lá, a teoria pode parecer abstrata, porém é com esse estudo que Lis nos lembra de algo quase elementar: “É tudo comida”. Pra você entender melhor, existe uma ideia em torno do podre “aceitável” e o “não aceitável”. “Um bom queijo roquefort ou gorgonzola, um chucrute bem curtido, uma uva fermentada, um faisandé (carne de caça em decomposição)? Não seriam também classificados como podre?”, questiona Lis.
Do ponto de vista biológico, tanto o queijo roquefort quanto o frango encontrado no lixo passam pelo mesmo processo de putrefação. No lado cultural da alimentação, no entanto, o roquefort, explica Lis, é visto como iguaria: “Se comermos o queijo, não estamos correndo risco; o queijo, inclusive, dá status a quem o come”. Enquanto o frango do lixo, em seus limites culturais, “deixou de ser comida pra alguém e se tornou comida pra outra pessoa, que aceitou o risco de comer aquele alimento”, compara.
Pensando em algo tão corriqueiro e que passa despercebido por muita gente, Lis lançou nova luz sobre o velho tema do desperdício. É certo que os índices de fome no Brasil não são mais os mesmos. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês), o país conseguiu reduzir a pobreza extrema — classificada segundo o número de pessoas que vivem com menos de um dólar ao dia — em 75% entre 2001 e 2012. Hoje, o Brasil tem 3,4 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, o que significa dizer que 1,7% da população ainda passa fome, de acordo com as estatísticas.
Esses dados, porém, levam em conta apenas o lado nutricional da alimentação. Se a pessoa comeu lixo, e ainda assim esteja alimentada (ou seja, nutrida), beleza. É por isso que os mesmos números a mostrarem que a miséria extrema foi abolida no país não levam em consideração a realidade mais complexa das pessoas que catam comida na rua e/ou vivem da xepa, o famoso resto das feiras. Inclusive, não há registros de gente no país que se alimente de sobras.
A alimentação, no Brasil, só passou a ser considerada necessidade básica em 2010.
Lis explica que a alimentação, no Brasil, só passou a ser considerada necessidade básica em 2010, quando o tema se tornou um novo artigo da Constituição Federal brasileira. Antes, porém, já existia o Fome Zero, o programa mais famoso do Governo Federal instituído na era Lula que, por meio do cartão do Bolsa Família, garantiu a famílias pobres o acesso não só a comida como outros bens – desde que as crianças dessas mesmas famílias se mantivessem na escola para receber esse auxílio federal.
Só que, ainda mais lá atrás (mais precisamente, na década de 30), conta Lis, o geógrafo Josué de Castro já falava da fome no Brasil como algo invisível: “Você via alguém mais gordinho, aparentemente nutrido, e pensava que ele não passava fome”, frisa a pesquisadora ao explicar que “a alimentação das pessoas que vivem de comida do lixo, por exemplo, não é considerada fome”.
Ao longo dos anos, sobretudo com a instituição de um programa federal como o Fome Zero, houve uma mudança no conceito do que é chamado de “segurança alimentar”, a cartilha que traça os preceitos necessários para não existir mais fome no mundo. “Muita gente confunde ‘segurança alimentar’ com higiene alimentar”, diz Lis. “Com a ideia da fome sanada, nós não teríamos de nos preocupar mais com a questão do abastecimento [de alimentos no país], mas sim com a questão de alimento com melhor qualidade e mais higiene.”
Para Lis, o mais importante é destacar a necessidade de todos terem acesso a uma comida boa. “O conceito atual seria a garantia de alimentação de qualidade numa quantidade que possa prover os meios necessários da vida da população.”
É por isso que dados sobre desperdício ainda saltam aos olhos. Relatório de 2013 da mesma Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) indica que, somente no Brasil, 26,3 milhões de toneladas de alimentos têm o lixo como destino — a maior perda está na ala de hortifrútis (45%).
A questão do podre, explica Lis, tornou-se um ponto virtual na sua pesquisa, mas, ainda assim, foi esse ponto que a permitiu pensar na desigualdade. “A ideia é que tudo que alguém come é comida”, coloca. “E, a partir do momento [em] que digo que uma pessoa na rua está comendo comida podre, existe uma associação direta do que a pessoa come com o que ela é.”
No Brasil, 26,3 milhões de toneladas de alimentos têm o lixo como destino — a maior perda está na ala de hortifrútis (45%).
Desse raciocínio, a pesquisadora lembra que o acesso à alimentação de qualidade e barata segue sendo algo necessário. Em São Paulo, por exemplo, a inciativa da ONG Banco de Alimentos, criada em 1998, consegue atender 22 mil pessoas por mês. O trabalho da ONG é recolher sobras de alimentos ainda em perfeitas condições de consumo, criando uma complementação alimentar para pessoas atendidas em 42 instituições cadastradas.
Ainda que importante, o trabalho do Banco de Alimentos representa uma pequena parcela do combate ao desperdício em uma cidade com 11 milhões de habitantes: “Em São Paulo, a gestão dos alimentos é muito difícil: sobra muita coisa”, lamenta. “No Ceagesp, as coisas são jogadas fora, os bancos de alimentos não são integrados; por isso, é preciso pensar em distribuição e acesso”.
Em âmbito nacional, o programa mais conhecido e de maior alcance é o Mesa Brasil. Mantida pelo SESC, a rede nacional de bancos de alimento existe em 89 unidades e atende, diariamente, cerca de um milhão de pessoas. De janeiro a junho de 2015, mais de 300 milhões de refeições foram distribuídas com ajuda de mais de três mil empresas parceiras.
Por isso, da próxima vez que vir uma pessoa revirando o lixo em busca de comida, lembre-se de que o seu roquefort não é muito melhor que a laranja passada do morador de rua. Todos, à sua maneira, estão escolhendo o que podem comer. “É preciso olhar essas pessoas na rua com mais dignidade”, destaca Lis.