Música

Como o 150 BPM se tornou o ritmo dominante do funk carioca

DJ Polyvox. 150 BPM Foto: Mariana Bernardes/VICE

A lama escorre pelo tênis, o suor pela testa, e a aglomeração debaixo da lona faz o calor ser ainda maior. São 9h da manhã no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, mas os jovens se recusam a dizer que é o fim do baile. Dançam como se estivessem há poucos minutos na festa. A bebida está quente, quase no fim, mas não importa: o próprio som deixa na onda, pois o que sai das caixas é o 150 BPM, ritmo que tem quebrado tijolos e barreiras nas favelas cariocas, e já espalha os cacos pelo asfalto.

O registro em vídeo do baile no Morro dos Macacos teve Bruno Dantas, o DJ Sexylove, como protagonista. Comum a tantas comunidades, a cena parece ser a essência do novo funk: mais veloz, pouco afeito ao mundo pop, e não à toa chamado de “ritmo louco”. Diogo Lima Costa, de 27 anos, é o DJ Polyvox, responsável, garante ele, pelo surgimento desse funk mais ligeiro. O 150BPM é feito para dançar — e dar aquela sarrada, quem sabe, depois do baile. Ou durante. O apelido de “putaria acelerada” explica: o ritmo é uma variação da cadência clássica do funk carioca, composta tradicionalmente por 130 batidas por minuto.

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“Toda hora tem um do bueiro para dizer que não fui eu”, reclama Polyvox. “O DJ Byano (famoso produtor de funk) costuma falar que eu não criei o 150 BPM. Claro que não criei! Não sou cientista nem engenheiro para criar aparelho de contar batidas por minuto! O BPM tem na música e nos batimentos dos nossos corações”, afirma, categórico, o DJ. O estilo surgiu há dois anos, literalmente, na brincadeira. Enzo, filho do DJ e na época com cinco anos, batia com uma garrafa pet de Coca-Cola na porta enquanto Polyvox trabalhava. “Ficou perturbando com aquela porra”, relembra. Ele resolveu acompanhar a batucada do pequeno com uma batida de funk no computador, e percebeu que o resultado era interessante. Surgiu assim o “Tambor Coca-Cola”, uma das primeiras versões. A semente foi espalhada no baile da Nova Holanda, no Complexo da Maré, e virou febre em outros lugares.

O funk 150 BPM acelera na contramão do que vem da Via Dutra. O gênero em São Paulo, encarnado na figura do produtor Kondzilla, é uma indústria audiovisual. Os clipes são nababescos: cenários com cores fortes, ambientados em mansões com carros importados e dançarinas embaladas por uma batida lenta, sensual e, acima de tudo, chiclete. Kondzilla é uma espécie Rei Midas de boné para trás. Os MCs Kekel, Kevinho e Livinho são apenas alguns dos hitmakers impulsionados por suas produções, cujos clipes frequentemente batem a casa das 200 milhões de visualizações — mais de um Brasil de acesso. Alguns cariocas até cruzaram a ponte aérea para tentar alavancar a carreira — caso do MC G15, do hit “Deu Onda”. Nascido em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, o cantor se mudou há alguns anos para vingar na carreira. O prestígio é tão grande que a Netflix anunciou para 2019 o lançamento da série Sintonia, história criada e dirigida por Kondzilla.

Se o funk paulista é Netflix, o do Rio é pirataria. Perto da fábrica de views e de grana que é o gênero de São Paulo, a versão carioca atua quase como uma guerrilha. O jeito “sujo” é semelhante ao que se via na década de 1990, com o surgimento dos funks proibidões vendidos em fitas cassete nas bancas de camelôs da cidade. “Estamos mostrando que o funk carioca pode ser sujo de novo. Feito com microfone de karaokê vendido a 15 reais, computador de baixa qualidade, voz distorcida, mas o produto chega a meio milhão de acessos. A nova geração resgatou essa naturalidade de antigamente”, diz Polyvox.

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DJ Polyvox. Foto: Mariana Bernardes/VICE

Com produções caseiras, esses produtores musicais têm como prática a divulgação de seus trabalhos de forma gratuita em canais no YouTube, de onde disparam, via notificações nos celulares, os chamados podcasts, montagens semanais de funk com cerca de trinta minutos de duração. Raramente estão nas plataformas digitais, já que a combinação de “criminalidade com putaria” é uma constante. “O funk de São Paulo é de playboy. Um paulista não vai gostar de um ‘sarra, sarra/roça roça’, ou de ficar colado no sovaco do outro. Não tem comparação. E tem um monte [de MCs] que rouba daqui: melhora a letra e deixa mais comercial. Eles têm muito o que aprender com a gente”, afirma Polyvox, antes de decretar: “O pessoal de lá deu uma estacionada terrível. Se não acompanharem o 150 e continuarem nessa mesmice, vai enjoar e ficar sem graça.”

O 150 BPM deu voz aos músicos que pareciam condenados ao fundo do palco. Os DJs, acostumados a serem atores coadjuvantes do sucesso dos MCs, curtem agora a onda de protagonistas, e a principal delas é mulher: Iasmin Turbininha. Com uma agenda lotada, que passeia dos bailes de favela às festas alternativas da Zona Sul, a jovem de 21 anos já influencia. “Recebo mensagem de muitas mulheres falando que não gostavam de funk, mas começaram a ouvir pelo fato de eu ser a única garota a tocar. Já não tem muitas MCs mulheres, e se não tivesse eu de DJ, talvez não teria nenhuma mulher na cena”, avalia Turbininha. “Muitas vêm me falar que estão aprendendo a fazer curso de DJ. Acho maneiro, mas eu particularmente não fiz. Aprendi na marra”, conta, rindo, entre a serenidade e a timidez. Criada na Mangueira, ela começou contando dinheiro para frequentar lan houses e produzir vídeos “traçados”, aquelas montagens de fotos com funk de fundo.

Outro que foi de anônimo à celebridade é Henrique da VK, de 25 anos. Representante da Vila Kennedy, Zona Oeste, ele apresenta ao lado de Rennan da Penha um programa semanal só com 150 BPM na Rádio FM O Dia, a mais popular do Rio. Seu companheiro de rádio Rennan, inclusive, assinou contrato com a Sony Music em maio. “É gratificante trabalhar em uma rádio de ponta e não fazer mais do mesmo, mas sim levar a inovação que eu sempre sonhei. Não acho que sou celebridade, sou artista, e isso é fruto de muita luta. O reconhecimento está vindo para uma profissão que foi chutada e humilhada durante anos”, celebra.

Não foi fácil achar espaço em um universo onde a música da moda dura não mais que um mês. Aos 28 anos, Sexylove, conhecido também como o “Rei da Baixada”, já foi de tudo: membro de grupo de pagode, dançarino, produtor e MC de funk. “Eu sou a prova viva de que o momento é dos DJs. Eu trabalhava com o MC Romântico (o do hit As Novinhas Tão Sensacional”), mas chegou uma hora que a renda começou a cair. Já tinha trabalhado como DJ na Baixada Fluminense, e decidi voltar. Retornei no momento certo, quando a profissão passou a ser mais valorizada”, garante.

Apesar de celebrado na cidade, o ritmo não é nem de longe unanimidade. MC G3, um dos mais famosos cantores de funk do Rio, é curiosamente mais afeito aos paulistas. “Aqui ninguém se preocupa em fazer uma produção musical maneira, um videoclipe legal. São Paulo sai muito na frente em tudo isso. Só peço musicalidade! Tem música que não dá para escutar, é uma depravação, uma pouca vergonha”, reclama G3, MC há mais de vinte anos.

“Aí me perguntam se eu sou contra ou se sou a favor. Para o ritmo de putaria, até dá. Mas ao descaracterizar a voz do artista, tira a identidade dele”, pontua. “O 150BPM faz parte do funk. É mais acelerado, mais dançante, mas tem que ser feito para putaria. Não tem como cantar um proibidão, um rap consciente no 150, seria loucura. Acaba virando o bichinho do Alvin e os Esquilos, fica ridículo”, critica G3, fazendo referência a uma prática ainda comum entre os DJs: ao acelerar a batida, aceleram também a voz do cantor, que fica distorcida e engraçada como a da trupe de esquilos do cinema.

O ritmo acelerado e propositadamente mesclado é resultado do caldeirão cultural que são os morros cariocas. Turbininha, levada pela mãe nos bailes da quadra da Mangueira desde os oito anos de idade, frequentemente aparece nos shows vestida com algum acessório em verde e rosa, cores consagradas da escola de samba. “Amo todos os ritmos, do funk ao samba, passando pelo forró, pelo rap”, diz ela, uma das primeiras a colocar o arrocha no tamborzão, uma mistura que fez sucesso.

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Iasmin Turbininha. Foto: Mariana Bernardes/VICE

A influência vem de todas as partes. Polyvox e Henrique da VK afirmam ouvir de tudo fora do ambiente de trabalho. Menos funk. O primeiro, baiano da cidade de Jacobina, cresceu no Rio curtindo com o pai os discos de Frank Aguiar, Calcinha Preta, Lairton e Seus Teclados. Henrique é outra onda: é fã de Kiss e Guns N’ Roses.

“A gente trabalha com música, então ouvir de tudo é fundamental para evoluir. Como tenho família evangélica, eu cresci ouvindo música gospel, e depois passei a ouvir rap internacional, como 50 Cent, Tupac, Dr. Dre. É importante saber tirar o melhor de cada coisa”, comenta o DJ Sexylove.

Mesmo pintado como novidade, o 150 tem um componente forte de ancestralidade. Um dos beats mais famosos do momento é a “macumbinha”, uma gravação veloz de toques de atabaques, instrumento típico do candomblé e da umbanda. O processo, aliás, tem semelhanças com o que o samba passou entre as décadas de 1920 e 1930, quando uma vertente passou a tocar tamborins, pandeiros e cavaquinhos de maneira aligeirada, mais propícia para dançar e brincar o carnaval de rua. Era o surgimento do samba de enredo.

Além de reconquistar os ouvidos do funkeiro carioca, o 150BPM tem outro mérito: o de quebrar as estruturas da forma como o funk era produzido até então no Rio de Janeiro. A nova geração de DJs, filhos dos anos 2000 — e da Furacão 2000 —, cresceu assistindo a consolidação do império de Rômulo Costa. A Furacão nasceu ainda nos anos 1980 como uma tímida equipe de som, mas tomou o controle do ramo nas décadas seguintes: era dona de programas em emissoras de rádio e televisão, gravadora e distribuidora, além de responsável pela carreira da maioria dos sucessos do gênero. Anitta talvez tenha sido o último. Coincidência ou não, a perda de força da equipe no cenário atual aconteceu no mesmo momento do crescimento dos DJs de podcasts, que trabalham de forma independente e horizontal, muito apoiados pelo poder da Internet. Assim, o trabalho ultrapassa os limites da cidade.

“Quando eu toquei pela primeira vez em São Paulo, pensei: será que o povo vai gostar desse ritmo? Mas a galera foi à loucura, sabia as letras das músicas. Eu abaixava o som e o povo gritava. Por causa da internet, o 150 estourou tudo, toca em lugar que eu nunca imaginei. Casa de artista famoso, de jogador de futebol”, comemora Turbininha.

Até o dia que reinventarem mais uma vez o funk, o 150BPM será o principal responsável pelo suor na camisa dos jovens nos bailes. Enquanto rabiscarem o chão com passinhos, Polyvox continuará orgulhoso, iniciando seus podcasts com um recado para a mãe baiana. “Alô, Mainha! Tô ficando famoso, porra!”.

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Estúdio da 150 BPM Records, em Campo Grande, Zona Oeste do Rio. Foto: Mariana Bernardes/VICE
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Iasmin Turbininha na festa Batekoo no Rio, em 2017. Foto: Mariana Bernardes/VICE
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Polyvox e o seu manager. Foto: Mariana Bernardes/VICE
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Foto: Mariana Bernardes/VICE

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