Seu Jorge: “O rock não é um gênero pro negro”

Confortavelmente sentado no encosto de um sofá de couro, Seu Jorge recebe jornalistas em seu bar nos Jardins, em São Paulo, na noite de terça (31), para falar do disco que lançava naquele dia. Músicas Para Churrasco Volume II não só dá continuidade ao disco anterior, como também segue o esquema samba-black-music cheio de hits que consagrou o músico carioca.

Além de comentar sobre as dez faixas do sétimo álbum da carreira, Seu Jorge falou sobre a capa idealizada pelo artista plástico Vik Muniz, sobre o show que terá a direção musical de Marcelo D2 e até sobre o release assinado pelo Caetano Veloso. Saindo um pouco pela tangente, resolvemos discutir sua carreira no cinema, seu bróder Bill Murray e as dificuldades em interpretar Mané Galinha em Cidade de Deus. Mas não vivemos só de passado: o carioca também comenta sobre seu próximo filme, em que interpreta o pai de Pelé, e as próximas empreitadas com o western O Matador e no papel de Simonal.

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Noisey: Como você concilia as duas carreiras?
Seu Jorge: Eu me jogo mesmo, cara. Eu me dedico. Tô há três meses ou mais sem ver minha família. Minha mulher e filhos, sabe. Tá todo mundo nos Estados Unidos e eu tô aqui direto. Só FaceTime mesmo. Aí é duro, só essa parte que é ruim, que não tá dando pra conciliar.

E este ano você ainda vai filmar mais dois longas, certo?
Sim, esses filmes que já estão rolando pra esse ano já vinham rolando. Entendo que na música a gente controla um pouco mais, no cinema não. No cinema sou mais um operário. Agradeço muito quando me convidam pra fazer um filme. É uma complexidade tão grande. Quando sou chamado, eu me sinto honrado demais e tento não perder a oportunidade.

E você pode falar um pouco sobre esses filmes que você vai rodar ainda?
O Matador é um western que vai rolar em 1900 e alguma coisinha no interior de Pernambuco. História interessante. Vou contar rapidinho. Você abre a cena e tem um bebê recém-nascido no meio do mato, numa chuva torrencial. Um dilúvio caindo e o bebê ali chorando. Nisso vem se aproximando uma onça. Pô, vai comer aquela criança. No que o bicho vai dar o bote de repente vem um tiro. BAU. E a onça cai. Desce um malandro lá de cima da árvore. Vê o bebê, vê a onça. Pega a onça, abre a onça, tira o coração vivo da onça, come o coração vivo da onça. Leva a onça pra casa e larga o bebê lá. Aí começa a chover pra caralho e ele resolve pegar o bebê. Tira o pelo da onça e empacota o bebê nessa onça e joga o bebê ali no cantinho. Matador. Você vai ver o filme.

Tem mais um né?
É, eu devo fazer o Simonal. Me convidaram e eu estou estudando, tô com o roteiro. Talvez eu não consiga fazer, porque ele tinha um jeito de lidar com a plateia que era foda.

O lance do Seu Jorge é usar um tênis de cada cor. Foto: Guilherme Santana/VICE


Você vai interpretar o Dondinho, pai do Pelé, no seu próximo filme. Como você se identificou com esse personagem?
Eu nasci no dia 8 de junho de 1970. O Brasil era uma felicidade só. Era tricampeão, tinha uma ideia de se pegar uma carona num crescimento econômico americano. Tinha todo esse movimento em torno do Brasil. A esperança nasceu ali. Pelé naquele momento era um negro fazendo 30 anos no auge da sua forma física, no auge da sua carreira num país totalmente negro com 90 milhões de pessoas e quase nenhuma tolerância pra epiderme. E o Pelé vem pra dar uma mudada nesse negócio. Mas quando ele era garoto jogar futebol era muito perigoso. O tio dele morreu. O irmão do Dondinho morreu e o craque era ele. O Dondinho chegou a jogar no Atlético mineiro, machucou o joelho e ficou coxo, com a perna fodida. Não tinha medicina pra isso e sendo pobre aí que não tinha mesmo. Então eram aquelas compressas, aquelas coisas que faziam pra curar. Por isso a mãe do Pelé tinha muito medo que ele machucasse e embarreirou até onde pôde. Mas foi a própria mãe, Dona Celeste, que tinha o cartão do coroa que levou ele ao Santos. Foi ela.

E você “conheceu” o Pelé bem novinho, né? Como foi?
Quando eu nasci tudo que minha mãe queria era que eu fosse jogador de futebol. Tem até uma história engraçada, eu estava na Presidente Vargas, há poucos dias de nascido, e ela resolveu me levar naquela multidão. Desfile do Corpo de Bombeiros, a Jules Rimet definitiva no Brasil e Pelé vinha acenando e tal. Era toda a Seleção, mas o foco era ele. Minha mãe ali comigo, chuviscava e o caralho. Na cabeça dela se ele acenasse pra mim uma energia viria. Disse que quando o Pelé ia passando ele virou pro outro lado. Ela é putaça com o Pelé até hoje. Ela falou: “Pô, esse cara tá de sacanagem comigo”.


Você já fez mais de uma dezena de filmes, mas qual dos personagem que você interpretou foi mais complexo?
Mané Galinha com certeza.

É um personagem muito forte, né?
Dificílimo. Tinha que ter uma dignidade praquele cara. Ele era um cara do bem e que a vida o convidou a fazer uma merda. Tanto é que fiz uma música no final do filme que é a “Convite Pra Vida”. ‘Sou morador da favela, também sou filho de Deus, não sou de chorar mazela, mas meu amor se perdeu’.
É o cara desacreditado das coisas. Além disso, era um cara que viveu, que existiu. Isso foi louco.


E como Mané Galinha apareceu no seu caminho?
Me lembro da quarta-feira que chegou o Fernando Meirelles e a Kátia Lund. Fazia quatro dias que tinha sido dispensado de Madame Satã. Eu não tava bem pra fazer o filme e o Karim (Aïnouz) me falou: “Pô, você não tá bem. É lamentável. Porra, eu vi o ano inteiro você, mas você não tá bem. Vou ter que tirar você”. Foi a melhor coisa que ele fez. Porque ele botou o Lázaro [Ramos] no meu lugar e aí foram dois
negão naquele ano no cinema. Falo isso porque tava difícil. Até aquele momento, quando eu me lembro de cinema era Grande Otelo pra caralho, a Rainha Diaba com Milton Gonçalves e Xica da Silva. Não me lembro de outras coisas. Depois teve Pixote, que tinha um contingente negro, mas não era o central. Então assim, Madame Satã e Cidade de Deus fizeram a virada. Depois começaram a chamar a gente de favela movie e o cacete.

Mas qual foi o fator decisivo pra sua escolha no papel?
A semelhança com o hômi da história é muito grande.

É verdade, tem um trecho que mostra a saída dele do hospital e realmente, vocês se parecem pra caralho.
Eu vi três vezes essa cena no VT pra fazer aquilo .

E por que esse foi o cara mais difícil de fazer?
Mané Galinha é um cara que viveu. Era um cara do bem que tava ali correndo e de repente deu ruim na vida dele.

Deu ruim não. Deu ruim pra caralho.
É verdade. Deu ruim demais, deu ruim demais. E ele manteve ali a coisa do “vou matar esse cara, vou matar esse cara, vou matar esse cara”. Ele se perdeu, lógico. Ele resistiu por muito tempo, mas depois não teve mais jeito. Já tava cheirando, já tava matando, já tava zoando e depois não era bandido? Calma aê, né veio. Você já matou, já roubou, já cheirou, já fumou e não é bandido? Você tá fazendo tudo o que a gente faz e só você não é? Peraí, né negão. Aí também você tá de sacanagem. Isso era um alerta. Isso é um sinal claro naquele texto. “Você molecadinha que tá vendo isso. Não pense que você que tá fazendo isso, aquilo e aquilo outro e não é, porque você é. Se fizer você é. E tá fodido.”

Tem mais algum personagem que foi foda de fazer?
Eu destaco o Beirada, no Tropa de Elite 2. Eu tinha bem pouco tempo pra conceber aquele negócio, pra inventar aquele cara ali e atender a história. Tem que ter aquela crueldade.

Era como um bicho numa jaula, né?
É. Mas não é só um bicho numa jaula. Um bicho na jaula é um bicho na jaula, mas um bicho na jaula com poder é foda. Com articulação. E é engraçado, porque se comenta Uê e Fernandinho Beira-Mar. É uma cena que comenta essa história. Então, por isso foi difícil fazer. Era uma cena extraída de um fato verídico.

Tem um outro personagem seu que é bem interessante que é o Pelé dos Santos, de A Vida Marinha de Steve Zissou. Você toca altos sons do Bowie em português. Você já curtia ou procurou a obra dele para interpretar o personagem?
Não sabia nada.

Seu Jorge como Pelé dos Santos em A Vida Marinha de Steve Zissou. Foto: Guilherme Santana/VICE


Você canta as músicas em português por quê?
Porque não tinha necessidade de eu fazer a versão de “Starman” se já existe uma maravilhosa, e a única dentro da lyrics. Na época eu não falava inglês e, mesmo que falasse, não escreveria em inglês. Pô, eu sou brasileiro, nasci no Rio. Sou do subúrbio. O rock não chegou. O rock não é um gênero pro negro, apesar de Jimi Hendrix. Suspeito até que o reggae o negrão aqui não gosta. Quem gosta de reggae mesmo é a galera do surfe, o pessoal da Guarda do Embaú, eles gostam. A negrada na favela não escuta o reggae music. Talvez porque a imagem do reggae ou do Bob Marley ou do dread esteja associada à maconha, que associa à polícia, que associa à repressão, que associa a um monte de coisas. Me lembro de não ter ouvido rock’n’roll.

Não ouviu nada?
Vamo lá. Dire Straits fez a cabeça. Aí tem Genesis, que se transformou numa banda pop, mas eu curtia. Guns N ’Roses com “Sweet Child O’ Mine, aquilo foi foda. Bateu. E o Bowie com “This Is Not America”, mas aquilo não é rock. É Pat Matheny Group. Eu já era do jazz e “Let’s Dance” também não é rock. “Let’s Dance” é preto. É uma música preta. A linha de baixo PIM-POM-POM. Eu suspeito até que esse som é do Nile Rodgers. [N. da E.: ele estava certo]

E como foi trabalhar com o Wes Anderson no A Vida Marinha?
Ele é um amigo que eu fiz para o resto da vida e tô muito feliz que agora a Academia entendeu a linguagem dele. Deram prêmios técnicos, mas deram prêmios. Ele tá aí desde Rushmore . Os Excêntricos Tenenbaums é uma obra-prima. É demais. O que que é o Pagoda? O que que é o Pagoda? É foda, bicho. Ele escolhe uns atores, umas figuras. Eu era um cara desses, eu era um Pagoda. Eu entrei não era pra fazer nada, era pra fazer umas músicas e tal. Aí ele começou a escrever pra mim. “E Pelé tá aqui também, Pelé faz isso. Pelé diz só: It’s the map”. Ele sabia que isso dava pra falar. Ele fez questão de eu estar lá. Morei seis meses na Itália, tive benefícios de aprender a mergulhar, aprender a falar italiano e inglês. Aprendi os dois ao mesmo tempo lá.

E você ficou próximo do elenco do filme, né?
Fiquei amigo do Bill Murray, do Willem Dafoe. Williem Dafoe passou o Réveillon comigo aqui no Rio. Cate Blanchett é uma dama maravilhosa. Anjelica Huston. Era uma constelação mesmo. A Sessão da Tarde inteira na minha frente. Foda, bicho.

Lá na redação a galera é bem fã do Bill Murray. Vocês ficaram bróders mesmo? Como ele é?
Ele é gente muito boa. Vai em todos os concertos, todos os shows. Agora recentemente no Blue Note ele foi.

Tem algumas lendas urbanas envolvendo ele. Você presenciou algum desses causos?
Ele é muito bom. Ele é ótimo como ser humano. Vai em todos os lugares. Se ele chegar aqui e sentar aqui ele acaba com a entrevista. Ele zoa, acaba com tudo.

Foto: Guilherme Santana/VICE



E teve mais algum diretor que te surpreendeu?
Cara, eu fiz um filme interessante com um cara chamado Ruppert Wyatt, ele fez o Planeta dos Macacos, esse novo. Era eu, ele, Brian Cox, Joseph Fiennes, Damian Lewis, Dominic Cooper, Liam Cunningham. Aí é a turma já inglesa. Fizemos um filme chamado The Escapist . Eram cinco caras que fugiam da cadeia. Passei um mês lá na Irlanda. Foi a primeira vez que fui pra lá. Um frio desgraçado. Janeiro, um frio muito grande e tinha uma piscina tone que a gente tinha que simular que era um rio e ficar de joelho numa água gelaaaada e chuva. A gente ficou dois dias por 16 horas fazendo aquilo. Esse cara foi interessante. Aí tem o Fernando [Meirelles], o Andrucha [Waddington] também foi um grande diretor. .

E pra terminar, você se considera mais ator ou cantor?
(Silêncio)

Essa mata.
É, boa pergunta. No momento eu tenho atuado mais como cantor, mas sou bom ator também. Digo que sou bom porque eu faço com amor. Seu eu pudesse, eu atuaria. E cantar não seria a minha primeira coisa. Atuando eu posso ser cantor também.

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