A história da música brasileira esconde, camadas abaixo da superfície, inúmeros tesouros artísticos que atravessaram décadas à sombra de uma devida apreciação. Isto se dá, arrisco eu, em face de que tais expressões estiveram muito à frente de seu tempo. Nos modorrentos anos de chumbo da ditatura, para se ter ideia, existiu em Vitória, no Espírito Santo, uma banda capaz de anteceder movimentos como o glam, o fusion e a tropicália. Falo d’Os Mamíferos, um trio de rapazes ousados que uniu conceitos da liberdade beatnik às ideias de Marshall McLuhan para se comunicar com o público em suas apresentações.
Parte do isolamento do conjunto tem raiz em sua base geográfica, mas fundamentalmente porque nem todos os acompanhavam e a indústria temia apostar em algo tão vanguardista. Afonso Abreu (baixo, voz), Mario Ruy (guitarra) e Marco Antônio Grijó (bateria) trabalhavam numa intensa atividade criativa, inovadora e sem paralelos no Brasil daqueles tempos. Somaram artifícios visuais, figurinos exóticos e maquiagens faciais aos shows antes até dos Secos e Molhados. E tudo isso numa ilha praticamente esquecida ao sudeste do país.
Videos by VICE
Felizmente, o devido resgate deste rico capítulo de nossa cultura vem sendo realizado por parentes dos músicos. Murilo de Abreu, filho de Afonso, criou há alguns anos o projeto Aurora Gordon, cujo selo acaba de lançar Os Mamíferos – Crônica de uma Banda Insular, escrito por Francisco Grijó, primo de Marco. O detalhado tomo de 336 páginas traz à luz mais do que somente uma biografia da banda construída a partir de apurados perfis dos personagens envolvidos em seus caminhos e concepções, Nos oferece, também, a chance de conhecer a riqueza literária de mais de 100 letras de músicas, poemas e textos inéditos jamais publicados anteriormente e que dão um vislumbre definitivo da intelectualidade desses artistas.
No que diz respeito ao processo criativo, Os Mamíferos contavam com o talento de diferentes colaboradores próximos aos integrantes originais. Aprígio Lyrio, uma das principais vozes capixabas de todos os tempos, espécie de crooner andrógino, era um deles. E tem agora, pela primeira vez, detalhes de sua trajetória biografados. Outros nomes de equivalente importância para o movimento iniciado pela banda foram Arlindo Castro, Sérgio Regis e Rogério Coimbra, os quais atuaram como compositores e mentores intelectuais do grupo, ajudando na construção das letras e influenciando a postura artística e o modo como criticava a sociedade.
Murilo teve a ideia de criar o Aurora Gordon em 2005, quando recebeu o convite para ser curador musical de um evento na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), chamado 70’s. “O principal objetivo era debater o impacto cultural na cidade de Vitória com a chegada da Petrobras e a exploração dos campos de petróleo, em paralelo ao que havia acontecido décadas antes, entre os anos 1960-70, com a criação da Companhia Vale do Rio Doce, a instalação do complexo portuário de Tubarão e a Companhia Siderúrgica”, conta ele. “À ocasião, pude dar vida à banda Aurora Gordon, cuja proposta artística é apresentar para os dias atuais o que foi o movimento musical e de contracultura capixaba entre a segunda metade dos anos 60 e o final da década seguinte.”
Desde então, o projeto vem realizando diversos shows multimídia, com exibição de fotografias, imagens e áudios originais da época. O repertório da banda é feito de canções exclusivamente criadas naquele período por artistas e pensadores locais. Dois discos com regravações de várias dessas músicas já foram lançados — Lamelombras Birinights (2011) e Aurora Gordon na Ponte da Passagem (2015) —, com a participação de expoentes contemporâneos da cena do Espírito Santo. Já passaram pela banda gente como André Prando, SILVA, Tamy, Lucas Arruda, Juliano Rabujah e Rodolfo Simor, entre muitos outros.
“Dos discos e shows, passamos a concretizar uma série de produtos contemplando Os Mamíferos, que são o principal elemento catalizador da contracultura capixaba”, acrescenta ele. Depois do livro, rolou no verão passado uma exposição fotográfica no Arquivo Público do Espírito Santo em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura, e, agora, o plano é concluir a produção de dois filmes sobre Os Mamíferos em formatos diferentes: um curta, intitulado Cosmorama, e um longa-metragem, com o título provisório de Diante dos Meus Olhos, ambos dirigidos por André Félix. A previsão dos lançamentos está para o segundo semestre deste ano.
“Os Mamíferos realmente inspiraram toda a sua geração aqui em Vitória”, afirma Murilo Abreu. “Falando em contracultura na música, existiam outros nomes, como Paulo Branco e Chico Lessa, que juntos acabavam formando um grupo intelectual extremamente ativo, inquieto e criativo nas mais diversas áreas”, acrescenta. “Nas artes, havia Atílio Gomes, hoje conhecido como Nenna, no cinema e nas artes cênicas, Luiz Tadeu Teixeira, Paulo Torre, Milson Henriques… estes e outros nomes são abordados no livro com mais detalhes. Não tenho uma memória, pois quando nasci a banda já havia acabado há quase dez anos. Mas sou influenciado pela proposta artística inovadora, criativa, e o jeito debochado do grupo em encarar a sua realidade em pleno regime militar.”
A biografia d’Os Mamíferos marca a estreia do escritor Francisco Grijó na não ficção. Assim como o Murilo, ele também se declara influenciado pela banda: “Marco foi aquele parente próximo que me ajudou na formação musical. Não me tornei músico, mas fui introduzido à boa música por ele. Foi ele quem me apresentou Miles Davis, Sonny Rollins, Thelonious Monk, John Coltrane. Foi ele quem abriu as portas do jazz para mim.”
A maior qualidade do livro está no modo abrangente como a banda e seu universo foram retratados. Os elementos humanos são trazidos à tona numa firme reconstituição espaço-temporal-cultural da pluralidade impressa naquelas canções. “Fonte primária é sempre um problema”, comenta o autor a respeito do trabalho de apuração. “Conversei com todos os envolvidos possíveis. Amigos, desafetos, fãs, detratores. Levantei os fatos a partir do confronto entre as ideias e os registros jornalísticos de que eu dispunha — que não eram muitos.”
Francisco enfatiza Os Mamíferos como um conjunto que produzia música universal numa cidade acuada pelos grandes pólos econômicos e culturais. No caldeirão sonoro do trio, de fato, fundiam-se notavelmente as escolas do jazz/bossa-nova, rock, baião, samba, balada, soul e MPB, entre outras. “Com uma capacidade instrumental invejável, que nada devia a destaques nacionais e internacionais. Isso sem falar no teor literário e poético contido em boa parte das letras. Algumas delas beiram a genialidade”, avalia o biógrafo.
Essas canções não se imprimem numa discografia oficial possível de encontrar nas lojas de discos ou em streaming. O legado de gravações deixado pelo grupo é um registro caseiro da captação de shows e ensaios. Mas, segundo o Murilo, muito em breve os áudios originais serão disponibilizados gratuitamente no site do Aurora Gordon. “São gravações em sua grande maioria precárias, que estão passando por um processo de digitalização, catalogação e tratamento para que atinjam uma qualidade mínima de audição”, garante ele. “Todo esse material em áudio, acompanhado de fotografias, jornais e publicações originais da época, estarão disponíveis no site.”
Veja mais algumas imagens raras d’Os Mamíferos que o Murilo Abreu descolou pra gente: