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Entretenimento

O que aprendi sobre utopia no Festival Literário de Óbidos

O Folio é um evento dedicado aos livros, mas não só. A coisa está feita para uma pessoa ir a um festival literário, mesmo sem ter hábitos de leitura. Ainda faz um figurão e sente-se bem consigo própria.
Todas as fotos pelo autor

É curioso voltar a Óbidos, a um Festival de Literatura cujo tema é a Utopia. É que, quando era pequeno, contavam-me estórias sobre uma casa assombrada mesmo ali na subida ao pé das muralhas. Curioso como, com o tempo, os fantasmas vão-se mudando para outros lugares, provavelmente para onde são levados mais a sério.

Parece que uma vez, há muito, muito tempo, um médico foi a essa casa tratar de uma pessoa que estava doente. No final foi lavar as mãos e esqueceu-se lá dos óculos. Voltou no dia seguinte, mas ninguém lhe abriu a porta. Uma pessoa que ia a passar, reparou e perguntou o que é que o senhor doutor queria. Ele lá explicou, para enorme espanto do popular, que se apressou a dizer que aquela casa estava fechada há anos.

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Lá se arranjou a chave, o médico recuperou de facto os óculos, mas reparou nas fotografias da parede e começou a dizer que, no dia anterior, tinha estado com aquela pessoa e com a outra e com a outra… a consternação foi enorme, pois, segundo disseram, essas mesmas pessoas tinham morrido há décadas!

Não percamos tempo a discutir as falhas deste argumento e, se é de literatura que se fala, sejam contos, lendas, narrativas, ou memórias, deixemo-nos embalar. Os mitos tanto podem servir para entreter à lareira, como para afastar pessoas curiosas de algo que se quer manter secreto e à distância.

Uma das grandes utopias do Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos, é que se passa numa vila com uma cidade lá dentro. De facto, Óbidos, que é uma vila do centro-oeste de Portugal, e já se denominava como "Vila Literária", é agora, e ao mesmo tempo, considerada pela UNESCO como "Cidade da Literatura".

A desconstrução de normas é uma das utopias tentadas, e foi curioso ver a instalação do coreógrafo Rui Horta, que, numa primeira fase escreveu um texto "pretensioso e chato", nas palavras do próprio, para, depois, na porta da Igreja da Misericórdia, numa emenda à mão, meter outro papel por cima a dizer que o outro texto "era mesmo snob".

A instalação de Rui Horta, na Igreja da Misericórdia de Óbidos

Propositado ou não, a brincar com tudo, até com a folha de sala, certo é que realça o formalismo e a linguagem que ainda impera por aí. Talvez por ser alguém que coreografa e trabalha com o corpo, veio à lembrança deste escriba todas aquelas afectações tantas vezes repetidas de mão no queixo e da estafada pose de braços cruzados que a malta faz na hora do retrato.

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A utopia continua na Capela de São Martinho, com as aventuras de Filipe Seems, personagem escrita por Nuno Artur Silva e desenhada por António Jorge Gonçalves. Se, para começar, uma Lisboa imaginária cabe dentro de uma capela em Óbidos, a coisa ganha tons de heresia (ou então não, e deve estar tudo bem), pois a intervenção no espaço foi desenhada directamente na parede daquele monumento medieval.

Heresia? As aventuras de "Filipe Seems", desenhadas directamente na parede da Capela de Óbidos.

A assinalar os 500 anos da publicação de Utopia, de Thomas Moore, não dá para destacar tudo num texto só, mas há Dom Quixote e moinhos de vento vistos pelo olhar de Júlio Pomar, retratos de escritores famosos pelo fotógrafo brasileiro, Carlos Freire, tertúlias, conferências, a presença de muitos escritores e figuras diversas, assim como a desbunda de Óbidos per si, com ruas estreitas e íngremes nos lados.

Num país que lê pouco e em proporção directa se edita muito, esta será talvez a maior utopia de todas: fazer um festival literário destas dimensões. Ou, se calhar, não. É que, neste caso, havendo um orçamento razoável - que há - e chamando o circuito habitual de escritores "da nossa praça", que privilegia os mais mediáticos, parece que nos deparamos com uma fórmula que chama malta. Se, a isto tudo, se aliarem outras actividades lúdicas - como comer e beber - faz-se a festa e passamos todos por gajos cultos.

Cultura selfie.

A coisa está feita para uma pessoa ir a um festival literário, mesmo sem ter hábitos de leitura. Ainda faz um figurão e sente-se bem consigo própria. É o País e o Mundo de sempre, ou, como diria Ruy Belo, uma pequena história trágico-terrestre. Mas isto é um gajo a desabafar, não é? Por falar em coisas possíveis, quis a geografia que o poeta Belo nascesse ali a 35 quilómetros de Óbidos, e no seu, País Possível, escrevesse isto:

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Desculpa ó meu amigo eu nada sei

Diz-me: que há? quem sou? quantos são hoje?

Que não está bem. Que sou incoerente

que eu devia ter um sítio para as coisas

Não sei. Tu tens razão. Eu realmente…