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É curioso voltar a Óbidos, a um Festival de Literatura cujo tema é a Utopia. É que, quando era pequeno, contavam-me estórias sobre uma casa assombrada mesmo ali na subida ao pé das muralhas. Curioso como, com o tempo, os fantasmas vão-se mudando para outros lugares, provavelmente para onde são levados mais a sério.Parece que uma vez, há muito, muito tempo, um médico foi a essa casa tratar de uma pessoa que estava doente. No final foi lavar as mãos e esqueceu-se lá dos óculos. Voltou no dia seguinte, mas ninguém lhe abriu a porta. Uma pessoa que ia a passar, reparou e perguntou o que é que o senhor doutor queria. Ele lá explicou, para enorme espanto do popular, que se apressou a dizer que aquela casa estava fechada há anos.Lá se arranjou a chave, o médico recuperou de facto os óculos, mas reparou nas fotografias da parede e começou a dizer que, no dia anterior, tinha estado com aquela pessoa e com a outra e com a outra… a consternação foi enorme, pois, segundo disseram, essas mesmas pessoas tinham morrido há décadas!Não percamos tempo a discutir as falhas deste argumento e, se é de literatura que se fala, sejam contos, lendas, narrativas, ou memórias, deixemo-nos embalar. Os mitos tanto podem servir para entreter à lareira, como para afastar pessoas curiosas de algo que se quer manter secreto e à distância.Uma das grandes utopias do Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos, é que se passa numa vila com uma cidade lá dentro. De facto, Óbidos, que é uma vila do centro-oeste de Portugal, e já se denominava como "Vila Literária", é agora, e ao mesmo tempo, considerada pela UNESCO como "Cidade da Literatura".A desconstrução de normas é uma das utopias tentadas, e foi curioso ver a instalação do coreógrafo Rui Horta, que, numa primeira fase escreveu um texto "pretensioso e chato", nas palavras do próprio, para, depois, na porta da Igreja da Misericórdia, numa emenda à mão, meter outro papel por cima a dizer que o outro texto "era mesmo snob".Propositado ou não, a brincar com tudo, até com a folha de sala, certo é que realça o formalismo e a linguagem que ainda impera por aí. Talvez por ser alguém que coreografa e trabalha com o corpo, veio à lembrança deste escriba todas aquelas afectações tantas vezes repetidas de mão no queixo e da estafada pose de braços cruzados que a malta faz na hora do retrato.A utopia continua na Capela de São Martinho, com as aventuras de Filipe Seems, personagem escrita por Nuno Artur Silva e desenhada por António Jorge Gonçalves. Se, para começar, uma Lisboa imaginária cabe dentro de uma capela em Óbidos, a coisa ganha tons de heresia (ou então não, e deve estar tudo bem), pois a intervenção no espaço foi desenhada directamente na parede daquele monumento medieval.A assinalar os 500 anos da publicação de Utopia, de Thomas Moore, não dá para destacar tudo num texto só, mas há Dom Quixote e moinhos de vento vistos pelo olhar de Júlio Pomar, retratos de escritores famosos pelo fotógrafo brasileiro, Carlos Freire, tertúlias, conferências, a presença de muitos escritores e figuras diversas, assim como a desbunda de Óbidos per si, com ruas estreitas e íngremes nos lados.Num país que lê pouco e em proporção directa se edita muito, esta será talvez a maior utopia de todas: fazer um festival literário destas dimensões. Ou, se calhar, não. É que, neste caso, havendo um orçamento razoável - que há - e chamando o circuito habitual de escritores "da nossa praça", que privilegia os mais mediáticos, parece que nos deparamos com uma fórmula que chama malta. Se, a isto tudo, se aliarem outras actividades lúdicas - como comer e beber - faz-se a festa e passamos todos por gajos cultos.A coisa está feita para uma pessoa ir a um festival literário, mesmo sem ter hábitos de leitura. Ainda faz um figurão e sente-se bem consigo própria. É o País e o Mundo de sempre, ou, como diria Ruy Belo, uma pequena história trágico-terrestre. Mas isto é um gajo a desabafar, não é? Por falar em coisas possíveis, quis a geografia que o poeta Belo nascesse ali a 35 quilómetros de Óbidos, e no seu, País Possível, escrevesse isto:Desculpa ó meu amigo eu nada seiDiz-me: que há? quem sou? quantos são hoje?Que não está bem. Que sou incoerenteque eu devia ter um sítio para as coisasNão sei. Tu tens razão. Eu realmente…
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