O Contravenção Zine, do Georges Kormikiaris e do Angelo Bruno, surgiu no começo dos anos 2000 em Santos e inaugurou uma nova modalidade para os fanzines punks brasileiros. É que até então, o comum era a gente topar com aquelas publicações meio poluídas, concebidas em sulfite e fotocópia, com matérias montadas no esquema colagem e que não tinham muito apreço por uma identidade gráfica definida. E o Contravenção deixou todo mundo de cara porque chegou anunciando periodicidade bimestral (em teoria) e com um projeto gráfico que só víamos em zines gringos, tipo o Maximum RockNRoll, Profane Existence, Heartattack, Punk Planet, Inside Front e I Stand Alone, entre outros. Pelo menos foi o que me veio à cabeça quando folheei pela primeira vez uma das edições à venda na Hanx!, uma loja que tinha na Galeria do Rock.
Não só o projeto gráfico, mas editorial, também eram mais refinados. Com colunas fixas, índice, expediente, quadro de colaboradores e seções que pontuavam o conteúdo: entrevistas, resenhas, matérias de apuração, opinião, scene reports e até classificados – um anúncio de página inteira no zine custava R$ 125 e ajudava a bancar a distribuição nacional e a impressão, em papel jornal, com uma variação de 1 mil a 1500 cópias em gráfica. Produto de legibilidade e qualidade informativa com ética punk, vendido ao mesmo preço da maioria dos fanzines da época, R$ 2. Um exemplo próximo atualmente em circulação seria o jornal Antimídia, do Nenê Altro, que nasceu na mesma data (exceto pelo formato tabloide, já que o Contravenção era na pegada de revista, grampeado e tal).
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Na saga toda da série Zine é Compromisso, esta entrevista que fiz com a dupla de editores foi uma das mais difíceis de agilizar até aqui. Não porque os caras integram aquela categoria de chatos amargurados que se decepcionaram com o hardcore ou são inacessíveis por qualquer outro motivo. Mas porque não são lá os camaradas mais ativos nas redes sociais e mesmo meus colegas zineiros das antigas desconheciam o paradeiro dos dois. Quando consegui falar com o Angelo, ele mesmo não mantinha mais contato com o Georges há miliduca. Só que aqui, pauta dada é pauta cumprida. Então, no fim deu tudo certo, e descolei até umas cópias do Contravenção e outros zines clássicos com os quais eles estiveram envolvidos (100Tribos/ Mayhem) via arquivo da editora Radical Livros (valeu, amigos!).
A trajetória do Contravenção deu largada no maior gás e terminou de um jeito meio bad. Era o começo da onda blogger e a própria galera da cena não dava mais muito apoio. “Bate um cansaço de ver que as pessoas não valorizam muito o que você faz”, lamentou o Georges em nosso bate-papo. Isso talvez explique um pouco sua falta de esperança no impresso, mesmo em um período em que a cultura zineira está de volta com tudo e vem produzindo admiráveis feitos.
Noisey: Quando vocês começaram a fazer o Contravenção e qual era o rolê de vocês na época?
Georges Kormikiaris: Se a memória não me trai, por volta de 2001. A gente estava na casa do Angelo, e conosco estavam também o Mário Toscano e o Arilson, do Abuso Sonoro. Conversa vai, conversa vem, sugeri que fizéssemos um zine. O nome acho que foi o Toscano quem deu. Eu lia fanzines há muito tempo, em especial o Maximum RockNRoll, que eu acompanhava desde o final dos anos 1980, e Forced Exposure. Também a revista inglesa The Wire. Não vai confundir com a abobrinha neocapitalista The Wired! (risos). Eu tinha 35 anos na época. O Contravenção não era o meu primeiro fanzine. Nos anos 1990, eu havia participado da produção do Mayhem, um zine criado pelo Maurício Panzone, em São Paulo.
Angelo Bruno: Os zines faziam parte do nosso dia a dia. Eu e alguns outros colunistas já haviamos publicado alguns zines, e fazia o Penso, Logo Resisto, entre outros. Eu tinha 30 anos quando começamos o Contravenção, já era velho (risos).
Em quais zines vocês foram buscar inspiração ou referência?
Georges: Eu me inspirava nesses zines que comentei, o Contravenção era muito influenciado pela MRR, já que a gente gostava muito do formato e estilo deles.
Angelo: Também éramos influenciados pelo Profane Existence, mas não fazíamos uma cópia. Esses zines são estadunidenses e viviam a realidade deles, e nós a nossa, sempre deixando nossa visão crítica sobre a cena.
Vocês seguiam uma linha meio Heartattack também?
Georges: Não seguíamos a linha do Heartattack porque, à época, eles já nos pareciam muito fechados e sectários, coisa da qual queríamos fugir como o diabo da cruz.
Nessa época aí vocês já eram bem envolvidos com a cena underground?
Georges: Nosso envolvimento era antigo. Eu já estava nessa de música independente há uns bons 15 anos, desde o final dos anos 1980. No começo da década de 1990, eu fazia o Mayhem, depois participei da criação de uma revista sobre música e cultura independentes, a 100Tribos, uma ideia do Eduardo Abreu, também fanzineiro e antigo participante do cenário underground paulistano; lancei, ainda, um selo independente, a Low Life Records, que distribuía material importado da SST, Peaceville, Earache e uma pancada de outros selos independentes, além de editar discos de bandas nacionais como Abuso Sonoro e Necrorrosion, entre outras. Além disso, estava sempre à cata de novidades da cena independente mundial assinando zines e revistas, comprando livros e discos e fuçando em tudo quanto era lugar em que fosse possível encontrar algum sinal de vida musical e artística inteligentes.
Angelo: Todos os nossos zines tinham envolvimento com a cena hardcore e punk de alguma forma, pois já estávamos nisso há bastante tempo. Nós recebíamos muito material para comentar e repassávamos para quem tinha mais afinidade com cada estilo, para que fosse feito um comentário pertinente, fosse positivo ou não.
A que tipo de música e ideias o Contravenção mais dedicava espaço?
Georges: Definitivamente ao punk e hardcore. A ideia era ir abrindo aos poucos para coisas mais esquisitas, do pós-punk ao noise, passando por música contemporânea que fosse extrema e radical, como algumas coisas de jazz atual (John Zorn, Peter Brötzmann, etc.), mas não tivemos condições de continuar com o zine até esse momento, infelizmente.
Angelo: Apesar de o zine ser mais dedicado à cena hc/punk e seus subgêneros, havia espaço para outros estilos desde que não fosse nada racista,nazi, ou qualquer lixo desses.
O que rolou de mais legal naquele período e que foi registrado como pauta no Contravenção?
Georges: Putz, cara, isso tem mais de 10 anos e confesso que é difícil lembrar agora, mas com certeza, eu registraria a entrevista com o Flicts no nosso último número e as colunas do Mário Toscano e do Hugo como das melhores coisas que a gente publicou. Nossos colunistas eram muito bons.
Angelo: De pauta também não lembro exatamente, mas eu gostava da repercussão que o zine tinha. Demorava pra sair, mas quando saía era uma festa. Meu top 5: entrevistas com MDR, Flicts, Judith Blair, Mário Toscano, Alcidez Caetano e a amizade com o Georges.
Quantas edições teve o fanzine e qual foi a maior tiragem/número de páginas ele chegou a ter? Ao contrário de outros zines, o de vocês era feito em gráfica, né?
Georges: Acho que o Angelo talvez lembre melhor, mas acredito que chegamos ao número #9… A arte final era feita em computador pelo Angelo e o zine era impresso em gráfica. Uma gráfica que fazia muitas capas de disco pra galera das bandas punk e que tinha um esquema bom de preço e atendimento. Como imprimíamos em papel jornal e conseguíamos uma quantidade razoável de anúncios, no final, colocávamos pouca grana do bolso pra inteirar os custos, então achávamos que valia a pena em relação ao trampo e qualidade que teríamos com xerox.
Angelo: Na real foram sete edições, a tiragem variava entre 1000 e 1500 exemplares. Chegou a ter 32 paginas, se não me engano.
A distribuição era feita via correio e vendas em banquinhas de show? Como funcionava essa parte?
Georges: Era feita no esquema mambembe da cena indie brasileira, uns poucos exemplares pelos correios, outros tantos em shows, e a maioria em lojas de disco, muitas na Galeria do Rock e alguns em lojas de outras cidades, Rio de Janeiro, Curitiba e até Belém.
Angelo: Também vendíamos pacotes com dez zines para distribuidores e lojas e chegamos a vender em algumas bancas de São Paulo.
Por que vocês pararam de fazer um zine tão legal?
Georges: Acho que por conta de uma série de fatores. Primeiro, isso não é algo que dá dinheiro para que você possa se dedicar à produção de uma publicação com o tempo necessário. As outras coisas às quais você tem de estar ligado acabam consumindo o teu tempo e energia e você acaba adiando as coisas até perceber que é inviável. Depois, bate um cansaço também de ver que as pessoas não valorizam muito o que você faz, muita gente que poderia comprar e ler o Contravenção, ou que a gente achava que se interessaria em comprar e ler, não fazia nem uma coisa nem outra, então, uma hora, você parte pra outra.
Angelo: Fora isso o zine não se bancava. Talvez a internet tenha um pouco de culpa, mas acho que nós tínhamos uma expectativa maior do que a realidade.
Vocês acham que o deslumbramento com os blogs ferrou com a circulação dos zines?
Georges: Sim, quando a web disseminou-se na virada do século passado para este, todas as publicações em papel sentiram o impacto e muitos zines passaram da versão impressa para a eletrônica, a meu ver, sem que isso provocasse um aumento no número de leitores. O que passou a acontecer é que você não tinha mais o custo de impressão e distribuição (esse é muito baixo, uma mensalidade prum provedor de hospedagem), mas isso não implicava necessariamente num aumento no número de leitores, ao contrário, como são muitos mais zines, havia menos leitores pra cada um deles…
Se no caso da mídia convencional rola aquele esquema de “uma mão lava a outra” com assessorias e fontes pra descolar umas pautas certeiras, como é que vocês faziam no meio alternativo?
Georges: A gente conversava pessoalmente ou por telefone e trocava e-mails para ir definindo a pauta. Quem escrevia pro zine sugeria coisas, a gente tinha contatos aqui e no exterior com quem trocávamos ideias e procurávamos ficar de antena ligada no que rolava na cena, tanto aqui como lá fora. A gente já era leitor e fuçador do que rolava na cena musical independente há muito tempo, era uma coisa que fazia parte do nosso dia a dia, então as pautas meio que iam surgindo naturalmente nessa busca diária por novidades e coisas legais.
Vocês acham que a plataforma impressa para o jornalismo musical ainda tem relevância?
Georges: Apelo zero. A plataforma impressa já era. No nível de especialização que um jornalismo musical digno do nome merecesse, é impossível. A informação, e a análise de qualidade, circulam hoje numa velocidade que a mídia impressa não tem como seguir e as novas gerações estão cada vez mais acostumadas com os meios digitais e distantes dos antigos meios impressos. Vai se formando uma segunda natureza na mente da galera mais nova, gente que nasceu nos anos 1990, que, a meu ver, faz com que seja quase impossível esses possíveis leitores se interessarem por uma revista ou zine impressos. Isso não quer dizer que uma revista não consiga isso, pode até rolar, mas teria que ser ou uma coisa com muito dinheiro envolvido (o que, obviamente, defeats the purpose…) ou tão improvável que só aconteceria por acaso (o que também, convenhamos, não nos traz muita esperança…). Vejo cada vez menos pessoas interessadas em gastar seus esforços e energias com mídia impressa com tanta facilidade eletrônica na cara do peão, então acho que essa plataforma tem muito poucas possibilidades de se manter de modo a ser notada por um número razoável de pessoas. Posso estar errado, no entanto. Veremos…
Angelo: Já eu acredito que sim, mas eu tenho apego por papel, não gosto de ler em outro formato, acho que sou um velho punk (risos). Acho que o problema não está no formato, e sim na falta de interesse das pessoas pela informação. Elas curtem a música, mas não se importam com as questões que rondam a cena.