Black Alien chega paciente e cirúrgico em ‘Abaixo de Zero: Hello Hell’

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Com mais prazer em trabalhar que antes, Black Alien dividiu com o mundo seu terceiro disco no começo deste mês: Abaixo de Zero: Hello Hell. Nele, o Mr. Niterói se reinventa como artista e escritor, lida e expõe de uma forma corajosa os problemas que enfrentou por causa da dependência química, entrando em detalhes e minúcias, como quando aponta geograficamente um dos lugares que frequentava (“quem me busca na Augusta?”).

A lírica bereta do primeiro volume de Babylon By Gus dá lugar a um Gustavo menos frenético, com uma levada que mesmo sem funcionar como uma metralhadora de palavras, revela porque ele sempre figura nas listas (sérias) entre os melhores MCs do país. A produção de Papatinho (Cone Crew Diretoria) percorre um caminho mais jazz e blues, mostrando que Black Alien não liga muito em se adequar à hegemonia do mercado brasileiro, que hoje passa pelo trap e o esquisito rap acústico.

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Black Alien. Foto: Marcola/VICE

Muitos disseram que Babylon By Gus, Vol.2 era a redenção e o grande expurgo de Black Alien em relação ao consumo de álcool e cocaína, entretanto, Hello Hell soa mais direto, cru e aberto aos problemas da dependência química. Para ele, o segundo disco acabou funcionando como uma interfase. “Foi duro escrever o Volume 2. Era um momento completamente diferente. Não conseguia juntar muito bem as ideias e eu ainda queria falar de tudo, só que eu queria fazer isso sem estar fazendo tudo, sob o efeito de remédio. Estava recuperando meu brilho mas ainda meio perdido. Neste disco [Hello Hell] eu sei um pouco melhor onde estou”.

Diferente dos dois volumes de Babylon By Gus, para escrever Hello Hell Black Alien não tinha um material de consulta. Em 2004, antes de entrar em estúdio, o rapper possuía vários cadernos com rascunhos feitos durante os anos, que pegou em uma viagem a Niterói, na casa dos seus pais. Em 2014, quando começou a trabalhar no Volume 2, ele ainda guardava alguns versos, ideias que escreveu durante a internação, e contou com amigos próximos que lhe enviaram anotações que foram escritos em suas casas.

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Black Alien. Foto: Marcola/VICE


“Sentei pra escrever esse disco praticamente do zero. As letras foram saindo na hora. Tinha dia que eu sentava de manhã pra escrever e não saía nada até de noite. Em outros momentos, começava 9h e 13h tava ligando pro Papatinho falando que eu já tinha um verso inteiro pra gravar”, conta Black Alien. “Eu sei que evoluí e acho que tô com mais paciência na criação. Tô mais calmo comigo. Antigamente eu sentava pra escrever sob o efeito de alguma coisa e acho que não tinha tanta paciência. Em alguns momentos eu trabalhava o flow, mas em outros eu tava sem paciência pra trabalhar, porque dava um puta trabalho. Eu meio que lia as coisas como texto e talvez saía como uma metralhadora por falta de paciência, ou não também, porque eu sentia prazer naquilo, de metralhar mesmo.”

Em Hello Hell o poder de síntese de Gustavo, que sempre teve o mérito de funcionar como uma espécie de repórter caótico do mundo a sua volta, ficou mais claro. Na linha “Nunca mais é tempo demais”, de “Carta pra Amy”, ele resume em poucas palavras como um alcoólatra recebe a frase “nunca mais você vai poder beber”, em oposição ao tratamento de um dia por vez. “Acho que a síntese vem com o tempo. É natural, não é pensado. É consequência de um maior volume de prática. Eu não praticava tanto. O número de músicas que eu tenho é muito parecido com o número das vezes que parei pra trabalhar. Pro Planet Hemp e pro Black Alien e Speed, eu sentava uma vez. Nesse disco eu sentei várias vezes pra escrever uma única música”, explica o MC.

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Black Alien. Foto: Marcola/VICE

A velha expressão da língua portuguesa “a prática leva à perfeição” pode soar clichê e batida pra muitos, mas no caso de Gustavo, é a mais pura verdade. Sem parar pra estudar, o exercício de sentar e escrever constantemente ajudou na construção de versos elaborados, com rimas internas, jogo de palavras e multissilábicas. “Não parei pra ouvir nada, fui fazer o disco. Eu só trabalhei. Não tenho essa frieza. Não é muito meu jeito pegar um sábado e ir ouvir trap pra entender. Chega sábado e eu quero ouvir Miles Davis e AC/DC. Quando eu tava mal e não conseguia trabalhar, não dava pra ouvir outros MCs, porque eles estavam em forma, escrevendo pra caralho. Aquilo me apavorava. Quando comecei a trabalhar, colocava alguns nomes brasileiros e já tirava logo, ia trabalhar”.

Responsável por ser um dos primeiros MCs a inserir versos em inglês no meio de seus raps e citar várias referências cinematográficas, Black Alien também sempre foi um artista que passeou por várias temáticas em seus versos, fugindo da estética gangsta que predominava no rap nacional na década de 1990 e 2000. “Eu falo de vários assuntos porque me interesso por vários assuntos. O mundo é ruim, mas eu gosto dele. Agora então, sem álcool, eu vejo as coisas claras. Acho que coisas ruins são ruins, mas as boas são boas. E eu gosto de falar sobre coisas. Um único assunto não é o meu jeito, o meu jeito é fazer um apanhado de coisas que observo. A minha projeção pra ser mais conhecido como rapper foi o Planet e lá a gente já tinha um leque mais amplo de temas. Depois, só continuei sendo eu. Se no mesmo verso cabe cinema, violência policial na favela e alguma filosofia que eu tenha lido, beleza.”

Abaixo de Zero: Hello Hell foi produzido em três lugares diferentes. Começou na casa de Gustavo, na região de Cotia, em São Paulo, acabou no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, e teve uma ponte no Anhangabaú, coração da Babilônia paulistana e local que Black Alien frequentou assiduamente durante os anos do “bolso cheio de pino”. “Pra minha recuperação, tenho que antecipar um monte de coisa. Voltar pro botequim é fácil. Fui pra um lugar onde vivi bastante da minha adicção ativa pra me testar. Testar minha febre pra quando chegar o sucesso, o reconhecimento, a nova fase, os shows, a estrada, porque isso é uma coisa que testa bastante, independente de ser dependente químico ou não. Resolvi estar mais forte pra enfrentar tudo isso, já fui lidando de frente com meus demônios”, lembra.

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Black Alien. Foto: Marcola/VICE

Ao contrário dos outros discos, Hello Hell não tem produção assinada por Alexandre Basa, mas sim pelo prodígio-bizarro Papatinho, que Gustavo conhece desde o começo dessa década e que começou a manter uma relação de trabalho em 2012, quando estava internado em uma clínica de reabilitação. “Respeitamos muito o fluxo, o que as coisas pediam. Se a gente sentia que não precisava colocar mais nenhum elemento no beat, não colocava. Se não precisava repetir o refrão, não repetia. Até a sonoridade jazz e blues não foi combinada”, comenta Black Alien, que achou que não era a hora de usar elementos do reggae e do ragga. “Eu não tô ouvindo muito reggae. Tenho escutado Eek-A-Mouse, que é um cara que gosto muito e é muito importante pra minha formação. Quando coloco o disco dele parece que eu tô no ventre da minha mãe. É algo muito de cabeceira, de casa. Não senti o ímpeto de cantar daquele jeito no momento. Penso que posso contribuir humildemente pro reggae brasileiro. Mais pra frente pode ser que tenha um projeto mais pro lado do ragga e do reggae. Pode ser, mas não foi dessa vez.”

Hoje, com 46 anos, mais de quatro anos de sobriedade, mais calmo, sentindo o prazer em trabalhar sem estar sob o efeito de drogas e tendo superado a insegurança e nervosismo de subir aos palcos sóbrio, Black Alien tenta se despedir diariamente da Babilônia, como deixa claro em “Capítulo 0“. “Eu não bebo mais, mas não adianta eu ser o bico seco mau-caráter, o bico seco filho da puta. Em 2016, teve um dia que acordei meio mal, peguei o celular e abri uma rede social. Vi um post que me lembrou um dos poucos inimigos que tenho. E aí fui lá ver como a pessoa tava, porque achei que ela estava na merda. Ela estava e eu fiquei me deleitando com isso. Na hora eu pensei: ‘Como assim, Gustavo? Você está achando isso bom?’. Alguma coisa ali mudou em mim. A partir disso, passei a cuidar da Babilônia que tenho dentro de mim e tentar ser um ser humano melhor. É aí que está o Babylon Bye Bye.”

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