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Pô, Funai, Recontrata o Afonsinho!

Nosso colaborador Felipe Milanez é praticamente um nômade que prefere curtir com índios nos mais diferentes rincões do Brasil do que qualquer outra coisa, como atesta sua reportagem Genocídio na Selva, publicada em nossa edição mais recente.

Felipe e Afonsinho.

Nosso colaborador Felipe Milanez é praticamente um nômade que prefere curtir com índios nos mais diferentes rincões do Brasil do que qualquer outra coisa, como atesta sua reportagem Genocídio na Selva, publicada em nossa edição mais recente. Olha o que ele nos mandou direto de Altamira, no Pará.

Quando Afonsinho era criança, seu pai, seringueiro, foi morto por índios assurini. Quando tinha 16 anos, precisava trabalhar e para isso teve que dar um gato no registro de nascimento, aumentar sua idade para 20, e entrar no serviço público. Foi contratado pelo Serviço de Proteção ao Índio (o SPI, antiga Funai) para um trabalho arriscado: pacificar índios arredios. Justamente, com índios. Correu risco de vida em expedições extremas. “Amansou” os irredutíveis e guerreiros indígenas kayapó, em aventuras que deixariam no chinelo os passeios do Coronel Fawcett. Ao meio dia da quinta-feira de 3 de junho de 1976, enquanto tentava pacificar os bravos índios do povo arara que estavam em conflitos na floresta com colonos na região da Transamazônica, Afonsinho foi atacado. Uma flecha entrou em seu pulmão, a outra atravessou o rim. A imagem feita quando ele chegou à cidade para ser hospitalizado dá medo. Seus colegas João Carvalho e Antonio Ferreira Barbosa também levaram outras espetadas. Todos sobreviveram. Afonsinho conseguiu fazer a paz e se tornou grande amigo e o maior aliado dos araras, com quem convivia até o último mês de janeiro. Afonsinho trabalha para proteger os índios dos brancos que invadem as suas terras. Quer dizer, trabalhava. Depois dessa vida de dedicação à causa indígena, descendente moral do Marechal Rondon, Afonsinho foi demitido. Estava no meio de uma leva de funcionários mandados embora por causa da reestruturação da Funai, em fevereiro.

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Hoje, com 72 anos, Alfonso Alves da Silva, é considerado o maior sertanista vivo do Brasil. Não guarda mágoas. “Mágoa? Não, não tem disso não, rapaz.” Nem com os índios que mataram seu pai, nem com aqueles que o flecharam, nem com a Funai. Voltaria a trabalhar com os índios, na Funai, se fosse recontratado? “Eu gostaria muito, sabe, é só isso que sei fazer da vida.”

A terra dos araras (Terra Indígena Cachoeira Seca) vai sofrer impactos da usina hidrelétrica de Belo Monte, o grande projeto do governo no rio Xingu que tem dado o que falar. Quando funcionários da Eletronorte estiveram na aldeia, os índios derrubaram a casa deles. Os funcionários ficaram com medo. Afonsinho não estava. Os araras confiam em Afonsinho. E fora ele, desconfiam dos brancos. A demissão pode deixar os índios araras sujeitos a serem usados e manipulados. Podem ficar à mercê dos vizinhos com que brigam e já mataram. Afonsinho é o intermediário deles, quem sabe explicar o mundo que os cerca. Afonsinho é, também, o guru de todos os outros sertanistas da Funai, que precisam aprender com sua experiência no mato – e a sua dedicação aos índios. É um sujeito pequeno, franzino, “Mas forte que é o diabo”, me disse um sertanista que o admira. Estive com esse herói brasileiro semana passada, em Altamira. Ele mora em uma casa na rua 7 de Setembro – cheguei lá perguntando na rua pelo “Afonsinho da Funai”. Chamei por ele, que veio caminhando em seus passos curtos, mas firmes.

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Vice: Você está triste?
Afonsinho: Eu estou bem. Rapaz, é a vida, né.

Como você ficou sabendo da sua demissão?
Primeiro, eu tava lá Cachoeira Seca, no posto, com os índios, e daí ouvi no rádio, na Rádio Nacional da Amazônia. Ouvi meu nome. Mas não entendi bem não. Depois eu vim pra cidade, ia sair de férias uns dias. Mas daí vieram aqui me avisar que eu tinha sido demitido, tinha perdido a minha função.

O que você estava fazendo no posto?
Lá é o lugar para fiscalizar a terra dos araras, para não ter invasão. Dar assistência pra eles. Agora eu tava construindo um alojamento melhorzinho, porque o outro já ta bem degradado. Mas daí faltava recurso, e a gente tem que se virar, né.

Quanto tempo você ficou no mato para fazer a pacificação desse povo, que atacava todos os brancos que chegavam ao território deles?
Foi de 1980 até 1º. de janeiro de 1987. Mas ia e voltava, a gente montou um posto, dava brindes pra eles, fazia uma roça grande. Eles eram nômades, andavam por tudo lá. Tavam fugindo, precisavam de comida. Daí vinham pegar essas que a gente deixava pra eles, mandioca, farinha, mamão, jerimum.

Por que vocês estavam lá para pacificar eles?
Estavam construindo a Transamazônica, que passou pela aldeia deles. E tinham muitos colonos chegando. Eles eram índio brabo, arredio, ainda não tinham tido contato com os brancos. Os brancos estavam atacando eles. Eles fugiam.

E você conhece hoje aquele que flechou você?
Claro, é meu amigo. Quem me flechou vive na aldeia do Laranjal, outra terra indígena dos arara, ali perto. Ele tá lá, é meu amigo. Não temos problema não. Acho que ele tem um pouco de vergonha, sabe. Quando me vê vem querer me agradar, dá umas bananas, um pedaço de caça. Mas não tem nada disso não. Ele me disse, é que ele não sabia que eu tava querendo ajudar ele.

Morreram muitos índios depois do contato, por epidemias?
Nenhum. Eu isolei completamente a área. Não entrava ninguém com gripe. Por dois anos, não houve nenhuma epidemia de gripe. E depois, a gente conseguiu salvar todos que contraíram o vírus. Foi a primeira vez que houve um contato, no Brasil, com um povo indígena isolado, em que todos os índios sobreviveram.

Eles confiam em você?
Confiam. Sou amigo deles. Eles sabem que eu sempre vou ajudar eles. Esses araras do rio Iriri, da Cachoeira Seca, não conhecem esse mundo dos brancos, e têm medo do que pode acontecer.

Não sei também se eu conheço esse “mundo dos brancos”.