Imagine essa rotina. No meio da lição de matemática, uma goteira insiste em pingar em cima do seu caderno. Se você quer ir ao banheiro, não tem água para a descarga, nem lixeira. O ginásio da escola ou não existe ou está interditado porque os pedaços do teto caindo podem te matar. Ao caminhar pelo corredor, vez ou outra você vai cruzar com um rato e algumas baratas que moram no mesmo prédio da sua escola. Se você precisa estudar à noite, a coisa complica, porque segurança não é garantia. O preço da passagem de ônibus subiu outra vez e talvez você tenha de faltar um mês de aulas porque não dá para bancar. A bolacha da merenda não ajuda a aguentar nem o primeiro período de aula. E ainda falta professor, fecharam o grêmio estudantil e não dá pra conversar com seus colegas na porta da entrada.
Essas são algumas das histórias que se repetem há tempos por escolas públicas estaduais do Rio Grande do Sul: de Porto Alegre às cidades do interior, do centro à periferia. Mas, agora os estudantes secundaristas decidiram que basta. No dia 11 de maio, o Colégio Estadual Coronel Emílio Massot, na capital, se tornou a primeira ocupação do estado. Vinte dias depois, já são 146 escolas ocupadas. “A gente imaginava que as escolas de Porto Alegre, outras escolas aqui perto, fariam a mesma coisa. Mas não que seriam tantas e tão rápido”, conta R.L., 16, um dos integrantes da Ocupa Massot.
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Apesar de terem se inspirado nos secundas de São Paulo, no RS as ocupações de estudantes não foram desencadeadas por um novo plano do governo ou acontecimento recente. Elas são resultado de uma situação crítica levada ao limite, em um estado que já foi o último do ranking de investimento em educação e é um dos mais endividados do país. “A maioria das escolas foi ocupada de forma independente e a maioria das pautas de reivindicação são bem características, bem específicas dos estudantes e de questões gerais do ensino”, explica M.B., uma das responsáveis pela página OcupaTudoRS – que acompanha e lista as ocupações.
Em geral, os estudantes das ocupas gaúchas brigam por melhoria na infraestrutura dos prédios, pelo repasse de verbas atrasadas, cobram a falta de professores e materiais de ensino, pedem passe livre e se posicionam contra projetos de lei estadual que preveem privatização da educação pública (PL 44/2016) e proibição de “doutrinação em sala de aula” (PL 190/2015), o tal “Escola Sem Partido”. E desde o dia 13 de maio, também passaram a apoiar a greve dos professores do estado, que há dez meses recebem salários parcelados.
Em nota, o governo do estado reforçou que “busca diálogo” e falou de investimentos realizados. Mas os estudantes já não querem só o conserto do telhado ou aumento da verba da merenda – atualmente cerca de R$ 0,30 por aluno. Eles convocaram uma radiografia da educação pública.
Quem chega na porta do Instituto Estadual de Educação Flores da Cunha, em Porto Alegre, tem que se identificar. Nome e identidade do visitante são controlados pelos estudantes que tomam conta da escola desde o dia 18 de maio. Ali, não passa bebida alcoólica, drogas, nem nada que possa ser usado depois para “queimar” a ocupação. Não é paranoia. Em Passo Fundo – a 328 km da capital – garrafas de bebida vazias foram jogadas para dentro do pátio de uma das escolas ocupadas, fotografadas como evidência, e os estudantes passaram a ser acusados de “baderneiros”.
O mesmo rito se repete em várias das escolas ocupadas. Como responsáveis, os estudantes têm tudo sob controle. Desde o cronograma de limpeza e funções na ocupa até a distribuição de alimentos e materiais de limpeza, que chegam às escolas mais centrais e são divididos com outras da periferia.
Assim que partiram para a ocupação, no IE, uma das primeiras ações dos estudantes foi pegar sabão e escova e limpar paredes e portas. Era o jeito de dizer que agora a escola era deles. “Tem toda a questão da autoestima do aluno de escola pública. Minha escola é suja, tem janela quebrada, banheiro não funciona, porque é isso que eu mereço. Esse é meu valor. Isso está mudando com a ocupação”, conta Silvânia Vasques, mãe de um aluno de 11 anos, que acompanha o movimento.
Com 147 anos, o IE é a escola pública mais antiga do Rio Grande do Sul e uma das mais disputadas em matrículas. Ainda que há 11 anos tenha o ginásio interditado por riscos na estrutura, esteja sem laboratórios e enfrente o mesmo problema de merenda da maioria das escolas estaduais. Os alunos dizem que antes do governo Sartori (PMDB), ao menos duas vezes por semana, “tinham comida de verdade, um arroz carreteiro ou feijão com arroz”. “Agora é só bolacha maria com batida de banana, às vezes um Nescau. E só”, conta C.A., também do 3º ano.
Por estar em um prédio histórico, a escola é uma das poucas que já tem reforma em andamento, desde o ano passado. Mas os alunos querem mais. “O que a gente está brigando aqui é que a gente não quer só representatividade, a gente quer participação. A gente quer essa mudança no modelo de ensino em que a gente esteja aqui só para obedecer, só para decorar. A gente está aqui porque a gente quer pensar também”, diz F.R., 17, aluno do 3º ano na escola.
Os alunos também se reuniram com a Defensoria Pública e Conselho Tutelar para entender direitos e deveres no lance das ocupações.
Em muitas escolas, estudantes têm pleno apoio de pais e professores. Mas em muitas outras, a resistência está cada vez mais dura. No próprio IE, onde a ocupação foi aprovada em assembleia, a direção não entregou as chaves da escola para os alunos – segundo eles, seguindo ordens da Secretaria de Educação – e mais tarde disse em nota, que “o diálogo não estava ocorrendo”. Alunos do magistério chegaram a invadir a escola para forçar a volta às aulas.
No interior, onde movimentações do tipo não são comuns, parece ainda pior. A.L., aluno do 3º ano da Colégio Estadual Cecy Leite Costa, em Passo Fundo, conta que várias vezes as faixas de ocupação colocadas em frente à escola, amanheceram rasgadas. Ele também acompanhou ocupações em cidades menores da região, como Marau (97 mil habitantes) e Ernestina (3 mil habitantes), e reconhece a pressão.
“Em Marau, a ocupação durou um dia. Não deixaram continuar. Em Ernestina, os professores não queriam entrar em greve e não apoiavam os alunos por medo de perder o emprego. Sem apoio deles é complicado. Em cidade menor é mais fechado e são poucas pessoas. Quando os professores não apoiam, manipulam e dizem que é baderna”, diz. “Mas não é só por educação, é por um estado melhor”.
Uma das reações mais agressivas, no entanto, havia sido contra os alunos da Escola Estadual Presidente Roosevelt, em Porto Alegre. Durante a semana, agressões físicas foram registradas em pelo menos três outras escolas. No Roosevelt, os pais de alunos do ensino fundamental não aceitam a ocupação dos secundaristas. “No primeiro dia, a gente teve pessoas gritando e pedindo para calar a boca. Pais de alunos. No dia seguinte, fomos ameaçados: se essa ‘palhaçada não acabasse’ ia botar porta abaixo, ia matar todo mundo, ia dar tiro na gente. Esse tipo de coisas para baixo. Pessoas gritaram na minha cara, botando o dedo na minha cara e vociferando contra mim. Foram situações em que a gente achou que ia apanhar ali, dentro da escola”, conta G.P.F, aluno do 3º ano e presidente do grêmio.
G. explica que as aulas do ensino fundamental – que acontecem em outro prédio – seguiram normalmente. Porém, agora que alguns professores e funcionários decidiram aderir à greve, podem ter de ser interrompidas.
A ideia de ocupar a escola vinha sendo trabalhada desde fevereiro, ganhou força depois de um aluno ser esfaqueado na porta da escola, em uma tentativa de assalto, em março. Na época, o representante do governo do estado tentou culpar o estudante por estar usando fones de ouvido e ter chamado atenção para o celular. Quando as outras ocupações engrenaram no estado, o Roosevelt decidiu que era hora de ocupar.
Alunos que são contra as ocupações dizem ter medo de ser prejudicados no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), com atrasos nas aulas. Algumas escolas estão organizando aulas preparatórias dentro das ocupações, com ajuda de voluntários.
G. diz não se importar. “Eu estou mais preocupado em conseguir uma educação de qualidade, não um exame só. A democracia aqui é diferente. Temos conselhos populares, dividimos comida, o que temos feito nas escolas é o modelo de sociedade que a juventude quer. Somos a geração que ocupou as escolas”.