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Valeu, Carlão

O cineasta brasileiro Carlos Reichenbach morreu ontem, no dia do seu aniversário de 67 anos. É uma grande perda. O Comodoro fazia filmes, mas também blogs, mostras, palestras e dava cursos de cinema e roteiro. Ele gostava de — para usar uma expressão que está nos créditos de O Bandido da Luz Vermelha do, Rogério Sganzerla no qual ele uma ponta — “filmes de cinema”, e sem a frescura ou a afetação que normalmente associamos aos cinéfilos.

O Carlão começou a trabalhar com cinema na Boca do Lixo, de onde saiu muita coisa boa de Pornochanchada e Cinema Marginal, e que ele considerava uma grande escola. Seus filmes da época da Boca são marcados por uma inquietação cinematográfica e um discurso político muito forte, tudo isso sempre entremeado com discussões sobre a sexualidade. Reichenbach nunca se furtou a generosas imagens de nudez e sexo, numa perspectiva bem coerente para quem se afirma verdadeiramente interessado nas classes populares — que ele julga menos moralistas e mais generosas que as mais abastadas. No final dos anos 60 ele fez esse curta joia sobre a Rua Augusta que você pode assistir aqui.

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O que sempre me atraiu nos filmes dele foi o jeito que tratava as personagens femininas. As amava, e montava tudo sem moralismos nem pudor. Está aí uma lição ignorada que faz uma baita falta na dramaturgia atual. Mesmo com um monte de nudez e o voyeurismo declarado das imagens (não sei se ele falou isso, mas está ali para quem quiser ver), o Reichenbach não considerava que para meter sexo na jogada o espectador precisava apenas passar por um processo de regressão e rememorar as primeiras experiências de autoprazer pré-adolescente.

Me parece também que ele é o típico cara que os raivosos complexados vira-latas odiariam, que chamariam de “brasileirinho” com todo o desprezo possível, já que seus filmes não seriam absolutamente geniais e reconhecidos globalmente (em qualquer escala), e porque ele seria louvado justamente por seu trabalho de formiguinha, o mais árduo e braçal, menos artístico. Isso é bobagem. Ele era inventivo, improvisador e um amante. Mas se você não se interessa por filmes com nomes como Amor, Palavra Prostituta; A Rainha do Fliperama; A Ilha dos Prazeres Proibidos e Filme Demência, deve ter algo muito errado com você.

Lembre-se também que estamos em tempos chatíssimos nos quais colunistas coxinhas correlacionam legendas e dublagens com leitura de livros, e o MINC solta uma nota de pesar sobre o falecimento do fera metendo a seguinte frase: “Foi taxado como autor de filme marginal e da Boca do Lixo”.

Desenhando, catam os méritos e encaram como merda, sendo que já tem até gringos variados sacando quão massa foi a Boca. É que tem brasileiro que se esforça pra ser mais gringo que gringo. E o Carlão era o contrário disso. Além do mais, ele preparava um filme que envolvia “uma fantasia pessoal, emocional e afetiva a respeito de Lênin”.

Não assisti a todos os seus filmes, mas gosto muito de Lilian M: Relatório Confidencial, que me parece um elo entre Pornochanchada e Cinema Marginal, e o entrevistei em 2007 para a finada revista de mulher pelada EleEla. Ele falou coisas muito legais, selecionei uns trechos que podem interessar.

Sobre os filmes Falsa Loura e Garotas do ABC:

“Meu interesse particular é quebrar esse tabu ‘bonita demais pra ser operária’, isso é preconceito — algumas das mulheres mais bonitas que já vi eram operárias, numa tipologia extremamente brasileira, inclusive.”

“Meu melhor material de pesquisa foi pegando ônibus com elas, na ida e na volta do trabalho. Queria saber do que elas gostavam, não o quanto elas ganham. O que elas ouviam? Minha observação foi bastante direcionada para os desejos, o que elas conversavam, atuei como um verdadeiro espião! [risos] Eu queria aprender o jeito que elas falavam, saber coisas íntimas, emocionais, da sexualidade e do desejo.”

Sobre a Boca do Lixo:

“Me ensinou a ter jogo de cintura! A ser um homem dos diferentes instrumentos. Eu aprendi tudo lá, a ser fotógrafo, assistente de câmera. Mas sobretudo aprendi a perder preconceitos. Sou filho de editor, letrado, lá comecei a gostar de cinema de gênero. Aprendi a forma de trabalho cooperativa. Passei a gostar de cinema artesanal. Minha formação sempre foi ligada aos pensadores libertários, principalmente pensadores que ligavam a política à sexualidade, especificamente William Reich, Erich Fromm e Herbert Marcuse. A questão do desejo era essencial, nunca separei da minha dramaturgia. Temas pra quebrar os tabus. Aí fui lá pra Rua do Triunfo e perdi outros preconceitos. Dirigi duas pornochanchadas e tenho muito orgulho, são reconhecidamente pornochanchadas políticas. A Ilha dos Prazeres Proibidos(1978) é sobre exilados políticos! E O Império do Desejo (1981) é sobre a questão do desejo. Entravam frases anarquistas no meio, com ‘toda propriedade é um roubo’. Eu só aprendi na Boca. Foi uma continuação do meu aprendizado na São Luiz, que foi o primeiro curso de cinema de São Paulo, eu sai de lá direto pra trabalhar na Rua do Triunfo. Fui fotógrafo de mais de mais de 30 filmes, mais da metade deles feitos na Boca. Ajudou a depurar o estilo que tenho hoje.”

Filmes B:

“A grande escola dos filmes B é a da liberdade. Os filmes dos grandes estúdios são produzidos pelos homens de Armani. Para o realizador sobra a TV. As melhores coisas feitas hoje em dia são os seriados e filmes para TV. O cinema B é isso, sem tanta gente intervindo. Você sente isso nitidamente, é onde grandes autores ensaiavam suas obras.”

Cinema e sexo:

“O que traz a dignidade pro corpo são as imperfeições, não pode usar o Photoshop! [risos] Há um moralismo na forma de mostrar o corpo humano.”

“O filme de sexo explícito entrou covardemente no Brasil, com mandado de segurança. O mercado ficou inundado de filmes estrangeiros, foi o cinema brasileiro quem pagou essa conta. Isso começou com a liberação de Calígula. Na época do Collor acabou com tudo. O país ficou moralista. Isso foi quebrado pelas classes C e D com a lambada, a dança da garrafa, onde o moralismo foi pras cucuias. Esse público que não vai mais ao cinema, vai dançar e se divertir na rua. Esse descareteamento veio dessas pessoas, que eram o público da chanchada — a Pornochanchada é a consequência desse gênero verdadeiramente popular, sua erotização. Há coisas moralistas e retrógradas, mas não como nos anos 90. Foi uma verdadeira época das trevas. Engraçado que foi a música que mudou isso, de uma forma mais brejeira, maliciosa. As classes artística e intelectual torceram seus narizes, mas não teve como segurar. E isso abriu a cabeça das pessoas.”