Identidade

Como evangélicos americanos ajudaram a impedir a legalização do casamento gay em Cuba

A igreja evangélica ganhou muito poder político em Cuba, e a comunidade LGBTQ está tentando lidar com as consequências.
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Foto por Ernesto Mastrascusa/LatinContent via Getty Images. 

Este ano, a psicóloga cubana Dachelys Valdés Moreno e sua esposa nascida nos EUA, Hope, tiveram seu primeiro filho. Apesar de morarem em Havana, elas optaram por fazer o parto – além de, nove meses antes, passar pelo processo de fertilização in vitro – nos EUA. Elas não podiam fazer isso em casa: o governo cubano ainda não reconhece casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Um ano atrás, a maioria dos cubanos LGBTQ estavam antecipando ansiosamente uma nova lei que legalizaria o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em julho de 2018, a Assembleia Nacional Cubana propôs uma nova constituição que incluía uma emenda (Artigo 68) que tornaria o casamento gay legal. Mas em dezembro daquele ano, o governo retirou a emenda do projeto, principalmente pela forte reação negativa de igrejas evangélicas. Isso significou que, assim como casamento, reprodução assistida ainda só está disponível para casais heterossexuais em Cuba; mulheres solteiras também são excluídas.

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Então, se Moreno e a esposa queriam ser legalmente reconhecidas na certidão de nascimento do filho, elas não tinham outra escolha a não ser fazer o parto nos EUA. Mas quando elas voltarem para Havana este ano, elas vão encarar outro dilema: Como Hope, a mãe biológica do bebê (que pediu para não ter o sobrenome divulgado), não é cidadã cubana, o casal terá que convencer o governo a reconhecer Moreno como a segunda mãe do bebê para que ele seja elegível para cidadania cubana.

“A questão da cidadania para um casal hétero é muito fácil, porque você consegue a cidadania cubana nascendo em Cuba ou tendo um filho com cubanos.” Mas Moreno teme que não será tão fácil assim para elas: “Eles esperam automaticamente uma mãe e um pai, e nossa certidão de nascimento diz que Hope é a mãe e eu também.”

Na última década, a discriminação contra pessoas LGBTQ em Cuba diminuiu e houve vitórias tangíveis na área dos direitos LGBTQ, lideradas em grande parte por Mariela Castro, filha de Raúl Castro e diretora do CENESEX (Centro Nacional de Educação Sexual). Em 2008, o governo aprovou cirurgia de confirmação de gênero de graça no sistema de saúde nacional, e em 2013, o país proibiu discriminação no local de trabalho com base em orientação sexual. Mas isso foi antes do pico de evangelismo recente em Cuba, parcialmente ajudado financeira e ideologicamente pelos EUA.

“Foram meses, pelo menos pra mim, assustadores, porque não vi esse resultado chegando.”

A guinada de Cuba de oficialmente ateia para secular – que indica mais tolerância com religiões organizadas – também causou a ascensão do evangelismo na ilha através de igrejas americanas, cujas ideologias vêm se espalhando pelas Américas. Na verdade, enquanto milhões de dólares de organizações evangélicas americanas são canalizados para conservadores em Cuba, comunidades religiosas estão financiando ações para retroceder uma década de progresso feito pelos cubanos LGBTQ.

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“Apoio tanto moral quanto financeiro de denominações e agências evangélicas americanas tem sido crucial para apoiar evangélicos cubanos em sua companha contra o casamento gay na ilha”, disse Andrew Chesnut, professor de estudos religiosos da Virginia Commonwealth University. Igrejas evangélicas cubanas também recebem financiamento de grupos religiosos do México, Colômbia, Chile e Brasil.

O exemplo mais proeminente até agora foi a reação negativa ao Artigo 68, onde igrejas evangélicas pressionaram o governo cubano para revogar a emenda. Igrejas metodistas, batistas e pentecostais organizaram uma petição contra a lei que juntou 170 mil assinaturas. A campanha não envolveu apenas organização entre as igrejas, mas se espalhou na forma de cartazes e visitas de porta em porta onde os grupos das igrejas, como a psicóloga e pioneira dos direitos LGBTQ de Havana Norma Guillard Limonta experimentou, argumentavam que “o mundo ia acabar se o casamento for redefinido como não entre homem e mulher e apenas para propósito de procriação”. Moreno também viu isso: em reuniões comunitárias antes da aprovação da nova constituição, ela disse que ficou chocada com o nível de preparo dos evangélicos, que pareciam ter coordenado uma mensagem contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

“Foram meses, pelo menos pra mim, assustadores, porque não vi esse resultado chegando; isso realmente me chocou e entristeceu”, disse Moreno. “O que mais me assusta é a capacidade de organização que eles têm e o fato de que de repente, num país como Cuba, a Igreja pode ser uma força de pressão política que pode ameaçar votar 'não' num referendo, até sabotar um projeto constitucional.”

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Depois do sucesso do esforço que removeu o Artigo 68, igrejas evangélicas se voltaram para o Conga Contra Homofobia e Transfobia – a versão cubana da parada do orgulho gay. Em maio, a 12º conga anual foi cancelada pelo governo, citando “tensão internacional e regional”. Um dos organizadores do evento disse ao El Nuevo Herald que a festa na verdade foi cancelada “para evitar confronto com grupos cristãos”, que os organizadores temiam que pudessem contraprotestar e começar tumultos nas ruas. Em respostas, ativistas realizaram uma marcha em 11 de maio. onde várias pessoas foram presas depois que oficiais do governo avisaram para não levar o evento a diante.

Mesmo que Cuba nunca tenha sido um país majoritariamente protestante, muitos cubanos se consideram creyentes (crentes). Antes da Revolução de 1959, o país era predominantemente católico, com uma porção substancial da população negra e mista praticando uma ou mais religiões afro-cubanas. Mas quando Fidel Castro se alinhou com o comunismo estilo soviético no começo dos anos 1960, Cuba se tornou oficialmente ateia. Prática religiosa foi marginalizada – até criminalizada – e membros do Partido Comunista Cubano foram obrigados a renunciar sua fé.

“Esse dinheiro vem com condições ideológicas.”

Quando a União Soviética, que estava subsidiando a economia de Cuba, caiu no começo dos anos 90, muitos cubanos se voltaram para a fé como um refúgio da devastadora crise econômica. Isso coincidiu com uma guinada na posição do regime Castro sobre religião: o termo foi mudado na constituição de 1992 de um país “ateu” para “secular”, indicando maior tolerância oficial.

Hoje, religiões de todos os tipos estão crescendo em Cuba. Estima-se que sete a 10% dos cubanos sejam protestantes ou evangélicos. O pico recente de evangélicos coincidiu com uma ameaça de outra crise econômica, já que fortunas de Cuba são ligadas a Venezuela.

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Enquanto muitos cubanos sofrem com a crise, igrejas geralmente são menos vulneráveis: a maioria das igrejas evangélicas cubanas tê um “igreja irmã” nos EUA para apoiá-las financeiramente e, como o ativista cubano LGBTQ e seminarista batista Adiel Gonzáles Maimó enfatiza, “Esse dinheiro vem com condições ideológicas”.

E mesmo que a homofobia não seja novidade em Cuba, oposição organizada contra direitos LGBTQ e pressão no governo cubano para revogá-los no último ano ecoa métodos de grupos fundamentalistas dos EUA que são incomuns em Cuba, onde espaços públicos são controlados de perto – e talvez mais eficientes por causa disso.

Recentemente, o Cuba Money Project da jornalista Tracey Eaton publicou uma lista de projetos relacionados a Cuba que receberam mais financiamento do governo desde que Trump assumiu a presidência. O número cinco da lista é o Evangelical Christian Humanitarian Outreach for Cuba (ECHO Cuba), com mais de US$ 1 milhão. Esse grupo recebeu aproximadamente US$ 2,3 milhões do governo americano de 2009 a 2017. O ECHO Cuba lidera viagens missionárias para Cuba, fornece recursos de treinamento para igrejas cubanas, e “combate a pobreza bíblica” na ilha.

Mas o grupo pode não estar exportando apenas ideologia religiosa. O fundador, Teo Babún de Miami, vem de uma família de exilados cubanos e, segundo uma matéria publicada no Granma (o jornal estatal cubano), apoiou a invasão anticomunista da Baía dos Porcos em 1971. “Como um bom mercenário, Teo Babún hoje estendeu sua atividade através de algumas denominações pentecostais”, diz a matéria do Granma, “que complementam os objetivos de Trump, destacados em junho de 2018, de aperfeiçoar a política subversiva dos EUA em Cuba e manipular denominações protestantes tendo em vista uma 'transição' em Cuba”.

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“O otimismo foi jogado pela janela pra mim com o Artigo 68.”

Em outra ação que sinaliza uma oposição evangélica organizada ao status quo, um mês atrás, um grupo de sete igrejas evangélicas se separou do Conselho Cubano de Igrejas (CIC) e estabeleceu outro grupo, a Aliança de Igrejas Evangélicas Cubanas. Líderes do novo grupo mantêm que o CIC não representa suas crenças, que incluem uma “defesa dos valores bíblicos” e uma visão de que casamento deve ser definido como a união de um homem e uma mulher.

“A criação dessa Aliança fomenta um espaço de unidade, de onde toda a força econômica, espiritual, religiosa e política das igrejas fundamentalistas cristãs será implantada”, escreveu Elaine Saralegui Caraballo, uma pastora lésbica e fundadora da divisão cubana da Metropolitan Community Church, depois da notícia. Ela acrescentou que o objetivo da Aliança é promover “supremacia cristã” com orientação da extrema-direita americana, de maneira similar ao que ocorreu em outros países da América Latina.

A nova Aliança evangélica está se preparando para uma luta renovada contra a igualdade de casamento: em 2020, o governo vai reconsiderar o “Código da Família” dentro da constituição. Maimó se sente confiante de que a igualdade de casamento será uma realidade em 2021, quando o Código da Família entrar em vigor. Ele baseia essa opinião numa pesquisa de 2016 que descobriu que 49% da população cubana estava a favor da igualdade de casamento, e na sua crença de que a vontade política do governo leve a estender os direitos LGBTQ. Mas ele também enfatizou que igrejas fundamentalistas estão cientes desses fatos – e estão se organizando contra eles.

Moreno estava mais preocupada sobre uma “guerra muito feia” pairando sobre o Código da Família e o futuro dos direitos da família dela. “O otimismo foi jogado pela janela pra mim com o Artigo 68”, ela disse. Ela sente que removendo o artigo da constituição mais recente, depois de ser aquele que o propôs em primeiro lugar, o estado cubano está dizendo aos grupos religiosos conservadores: “Vocês estavam certos”. Se grupos evangélicos conseguiram se organizar tão bem em apenas alguns meses contra o Artigo 68, ela acrescentou, eles têm dois anos para fazer o mesmo com o Código da Família. E se o casamento gay não for legalizado em breve em Cuba, o futuro para Moreno e sua família continua carregado e incerto.

“Essa batalha não pode ser perdida”, disse Moreno, “porque se o Código da Família for reescrito sem igualdade de casamento, vai levar 30 ou 50 anos para que a questão seja revisitada”.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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